A regionalização inteligente da era digital: uma nova administração institucional e coletiva

É fundamental que, nesta década, as administrações públicas regionais e sub-regionais não sejam instrumentos de ação política, mas, antes, instrumentos de cooperação técnica e administrativa.

Trago a debate, mais uma vez, o tema da regionalização administrativa, porque ninguém entenderia que não aproveitássemos as novas circunstâncias para renovar os nossos conceitos políticos e perceber o verdadeiro alcance do que está, doravante, em jogo. Com efeito, as grandes transições da próxima década – climática, energética, ecológica, digital, laboral, demográfica, migratória, sociocultural, geopolítica – pela enorme turbulência que irão desencadear e, muito em especial, a transformação digital pela desintermediação política, institucional e administrativa que causará, estarão na origem de uma profunda reforma da política administrativa e de seus incumbentes respetivos. 

As competências digitais alteram a natureza da conexão entre competências funcionais e institucionais. A revolução digital, a economia das plataformas e a sociedade colaborativa abrem um novo espaço público democrático para a regionalização administrativa inteligente que, por isso mesmo, precisa de ser reinventada e reconfigurada. Não de trata de deitar mais dinheiro para cima dos problemas, trata-se de fazer mais e melhor com menos. Será a regionalização administrativa, finalmente, o rosto da nova inteligência institucional e coletiva, o novo sistema operativo da política administrativa no horizonte 2030?


Os défices estruturais da sociedade portuguesa

Comecemos, porém, com os défices estruturais da sociedade portuguesa, pelos evidentes efeitos sistémicos que estes défices representam. Desde a entrada na CEE em 1986 que a política da administração se confunde com a agenda, as elegibilidades e as regras dos quadros comunitários de apoio (QCA), ou seja, o programa nacional de investimentos é, na sua grande maioria, financiado pela programação plurianual de fundos europeus, um ritual político que se repete de sete em sete anos e que, desta vez, faz convergir o PT 2020 ainda em execução (11 MM), o PRR 2026 em vias de aprovação (16 MM), o PT 2030 em discussão (30 MM) e outros programas mais especificamente europeus. No total, para a década 2020-2030, estaremos muito próximos dos 60 MM euros, ou seja, cerca de 6 MM/ano de fundos europeus (3% do PIB), aos quais se podem ainda adicionar alguns empréstimos comunitários, orientados, por exemplo, para a capitalização e inovação de empresas.

Face a este modelo silo vertical de política administrativa, com os resultados que são conhecidos, a interrogação que imediatamente nos assalta é a de saber se vamos cometer os mesmos erros de conceção e realização dos investimentos que fizeram com que, nas últimas duas décadas, a taxa de crescimento anual do PIB português ficasse próximo de 0.8%, um ritmo de crescimento que não nos libertou do peso excessivo da dívida pública e privada e, também, não deixou margem política para resolver os principais défices estruturais da sociedade portuguesa.

Os documentos e os números que já conhecemos, pela forma conservadora como tratam a programação e o planeamento da malha produtiva do país, dizem-nos, mais uma vez, que não se afigura uma tarefa fácil executar por ano cerca de 6 MM euros de fundos europeus, sabendo nós a experiência de anos anteriores (com metade daquele valor anual) e o labirinto de procedimentos que são necessários entre a abertura de um concurso e o encerramento de um investimento.

Ou seja, para lá do enunciado de vários planos de transição a política da administração não nos assegura que serão resolvidos ou mitigados os défices estruturais da sociedade portuguesa que deixámos acumular nos últimos 20 anos, a saber:
- A quase estagnação do binómio produtividade-competitividade (que empobrece uma boa parte dos que trabalham)
- O círculo vicioso de baixas qualificações, baixos rendimentos, elevada desigualdade social e pobreza
- O peso excessivo dos custos de contexto e as inúmeras distorções da despesa fiscal e dos benefícios fiscais; a descarbonização e a digitalização requerem uma alteração destes benefícios
- A irrelevância do mercado de capitais para efeitos de capitalização, redimensionamento e inovação de PME atira estas para as mãos do sistema bancário
- A reduzida integração e especialização das nossas cadeias de valor e respetiva internacionalização (as exportações têm de crescer muito para lá dos 43% do PIB de hoje)
- A ausência de um plano de reforma da divida pública e privada (que nos pode estrangular até ao final da década, com mais TAP e NB à mistura)
- Os excessos regulamentares e regulatórios em redor da administração da justiça, da fiscalidade, do licenciamento, dos pareceres ambientais, que burocratizam a administração pública e reduzem o incentivo ao IDE
- A profunda transformação e competição no mercado socio-laboral exigem uma revolução na formação profissional dos ativos, na coesão da economia social de mercado e na política social do Estado providência do século XXI
- Os efeitos assimétricos das grandes transições desta década exigem mais equidade e efetividade das políticas de coesão territorial para impedir novos fluxos migratórios para o litoral e o exterior
Trinta e cinco anos depois da entrada na CEE o país está claramente melhor, mas uma parte importante dos portugueses continuará a lutar para não ficar mais empobrecida.


Regionalização inteligente, a nova administração institucional e coletiva 

Estes são os défices estruturais que carregamos há décadas, este é o momento e o contexto apropriados para realizar uma reforma estrutural e constitucional que traga mais democracia à democracia política que temos há quase 50 anos. Com efeito, um desses défices estruturais, com impactos transversais em muitas áreas, diz respeito, justamente, à reforma da administração pública e, nesse âmbito, a nova regionalização administrativa, agora, em plena era digital e num contexto muito distinto da regionalização que foi abortada nos anos noventa do século passado.

A minha tese é fácil de enunciar: no 25 de abril de 2024, meio século depois da Revolução dos Cravos, será, finalmente, posto um fim à inconstitucionalidade por omissão em matéria de regionalização administrativa, isto é, teremos implantado em Portugal uma reforma democrática da nossa inteligência institucional e coletiva, uma nova infra-estrutura da democracia política menos normativa e mais cognitiva?

Sendo esta a minha tese, falta, em minha opinião, um middle level concept que nos remeta para um plano mais operacional e operativo, que não se limite a um enunciado programático de investimentos nacionais, a uma projeção macroeconómica difusa e agregada ou a uma avaliação custo-benefício de grandes projetos de obra pública sem um claro efeito reticular. Uma vez que estamos perante grandes transições e transformações assimétricas durante toda a década é imperioso, por um lado, acautelar a equidade dos efeitos de rede e aglomeração sobre a geoeconomia regional, por outro, promover as conexões necessárias entre investimento público e privado e revisitar as cadeias de valor com potencial para serem exportáveis e perguntar de que modo os investimentos para a década aumentam a sua rede arterial e capilar, a sua produtividade e competitividade.

Qual é o panorama geral à nossa frente? Temos instrumentos financeiros substanciais (subvenções e empréstimos) para uma década, mas, não obstante, não conhecemos uma política regional digna desse nome com a correspondente regionalização funcional e institucional dos instrumentos de política dos vários programas temáticos operacionais, nem temos uma estratégia administrativa para a digitalização dos territórios que, finalmente, ponha termo ao modelo-silo, corporativo e vertical, que remete as regiões e as comunidades locais para uma condição de representação subserviente, e tudo isto apesar da consagração constitucional das regiões administrativas. Com a revolução digital, a economia das plataformas e a sociedade em rede tudo será muito diferente:
- Não se deve confundir a regionalização administrativa dos anos noventa do século passado com a regionalização inteligente do século XXI
- Não se deve confundir um programa de desenvolvimento regional com um somatório de candidaturas aos fundos europeus
- Não se deve confundir o papel institucional e funcional de uma comissão de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) com uma autoridade de gestão dos programas operacionais
- Não se deve confundir os instrumentos digitais (uma plataforma analítica regional) com o ecossistema digital de base territorial que nos proporciona uma nova inteligência coletiva e uma base para renovar a nossa convivência democrática.

Ou seja, doravante, deixámos de estar confinados pela lógica binária convencional do Estado-administração versus o destinatário-utente. Com a revolução digital, a economia das plataformas e a sociedade em rede, um Estado-administração omnipresente que está sempre a exigir conformidade já não faz muito sentido. A administração da política pública está, por isso, obrigada a reinventar-se e a encontrar pontos de acostagem onde se cruzem e conciliem as competências funcionais dos atores privados com as competências institucionais dos atores públicos. Eis alguns desses pontos de acostagem a um nível intermédio: 
- A organização de redes de cooperação e extensão empresariais tendo em vista o redimensionamento das PME e o acolhimento de start-ups, mas, também, o mapeamento de cadeias de valor com maior potencial
- A organização de redes de ciência e tecnologia e sua conexão com as redes empresariais
- A organização de comunidades locais de energia e a gestão de programas de eficiência energética
- A organização da inteligência coletiva territorial, seja através das smart cities ou smart regions e a oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns das CIM
- A organização de sistemas de economia geolocalizada, por exemplo, os sistemas agroalimentares (SAL), os sistemas agroflorestais (SAF), os sistemas agroturísticos (SAT), os sistemas agropaisagísticos (SAP), entre outros
- A organização de redes e plataformas de economia circular e regenerativa
- A organização de redes e plataformas de prevenção, mitigação e adaptação da natureza e ambiente, assim como de prevenção e monitorização de riscos globais
- A organização de redes e plataformas para o 4.º setor, em redor dos bens comuns da cultura, solidariedade social e formação ao longo da vida.

Estes exemplos de redes e plataformas mostram-nos à evidência que é necessário um incumbente acreditado, se quisermos, um ator-rede com competências de coordenação em matéria funcional e institucional. É aqui que entra a regionalização administrativa da era digital e a nova reconfiguração do incumbente regional. Nesta fase só a CCDR ao nível NUTS II está em condições de desempenhar esse papel, mas, daqui até 2024, é perfeitamente possível encontrar uma plataforma colaborativa de inteligência coletiva territorial em redor, justamente, da articulação daqueles pontos de acostagem.


Notas Finais

As grandes transições da década de 2020-2030 não seguirão, muito provavelmente, um guião conhecido e este facto relevante mina a segurança da política administrativa e a estabilidade institucional dos incumbentes respetivos. Tudo parece estar em causa e nunca como agora a reforma do Estado-administração foi tão necessária. 
A principal tarefa do próximo futuro é governar e administrar pela via da cooperação, ou seja, realizar a quadratura do círculo e pôr de acordo universidades/politécnicos, associações de municípios, associações empresariais e serviços regionais e, no interior deste quadrado, criar um centro de racionalidade ou ator-rede que seja capaz de pôr alguma ordem na cacofonia ecológica e digital do mundo das pequenas economias regionais, locais e rurais. 

Breve, o futuro próximo será feito de comunidades inteligentes, plataformas digitais colaborativas, serviços de rede, financiamentos mais participativos e atores-rede como incumbentes principais. Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor, muito para lá do velho modelo-silo, vertical e corporativo, próprio da nossa vetusta estrutura política unitária e centralizada. 

A terminar, deixo um aviso à navegação. Seja qual for a repartição de competências entre a União Europeia e os Estados-membros haverá, muito provavelmente, uma cumplicidade entre estes dois níveis de governo e administração e, em consequência, uma relação desigual face às administrações subnacionais, bem como aos direitos, interesses e aspirações dos cidadãos. Por isso, eu insisto. É fundamental que, nesta década, as administrações públicas regionais e sub-regionais não sejam instrumentos de ação política, mas, antes, instrumentos de cooperação técnica e administrativa. Termino como comecei. Não se trata de deitar mais dinheiro para cima dos problemas, trata-se de fazer mais e melhor com menos, caso contrário não seria uma regionalização inteligente, seria uma regionalização estúpida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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