A brutalidade em Israel
É mais simples atribuir as culpas a um rocket qualquer do que reconhecer a conivência com o genocídio em curso. Israel quer tornar impossível a existência da Palestina e o mundo lava as mãos como Pilatos.
Uma “discriminação sistemática” diz um grupo de especialistas europeus, um apartheid dizem a Human Rights Watch e a organização não governamental israelita B'Tselem. A crítica é à forma como Israel trata os palestinianos ou os árabes israelitas. Leis para judeus e leis para árabes, uns são os cidadãos de primeira e os outros nem se percebe se a lei os classifica como cidadãos. Leis que se impõem pela força porque lhes falta a razão. Leis fora da lei internacional e do cumprimento dos direitos humanos. Leis que são um sistema de injustiça.
É este o início da história. Não se deixe enganar pela narrativa do rocket que o Hamas atirou e que justifica a brutalidade israelita. Nem pela ideia da culpa que deve ser distribuída pelos lados beligerantes. Essa é a patranha dos que agora apelam à paz quando têm fechado os olhos à guerra, dos que exigem respeito pelos direitos humanos mas são coniventes com o permanente desrespeito pelos acordos internacionais e pelo perpetrar de crimes de guerra. Lágrimas de crocodilo.
Há uma violência estrutural na forma como Israel lida com os palestinianos, em particular em Jerusalém. Em território ocupado - o que significa que a ONU não reconhece como legítima a anexação que Israel fez desta área - a discriminação é geral: demolições de casas, revogação arbitrária de autorizações de residência, encerramento de instituições ligadas à Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Há uma lei particularmente injusta, reservada apenas a judeus, que permite reivindicar habitações ou terrenos com base em supostos direitos de propriedade do século XIX. A chamada Lei de Ausência é usada para despejar famílias palestinianas em favor dos direitos, muitas vezes forjados, da comunidade judaica ortodoxa.
A faísca dos acontecimentos recentes foi a notícia de despejo de famílias palestinianas do bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental. A Lei da Ausência servia outra vez para despejar famílias palestinianas sem que tivessem qualquer possibilidade legal para se defenderem. Uma manifestação formou-se para exigir justiça e rejeitar uma lei injusta e foi violentamente reprimida pela polícia israelita. E tudo entrou em ebulição.
A Lista Árabe Unida, que reúne partidos da comunidade árabe israelita, tinha adotado uma estratégia arrojada em 2015: tornar central a luta por direitos iguais na sociedade israelita. Este caminho, feito dentro das instituições, procurava conquistar a plenitude de direitos para 20% da população israelita. No entanto, a notícia dos despejos em Sheikh Jarrah e a violenta repressão deixaram exposta a fratura no país e lançaram o caos em várias cidades. Se a lei é injusta, a desobediência não é uma obrigação?
E o desrespeito contínuo pelos limites territoriais definidos pela ONU? Ou a contínua ocupação forçada de territórios palestinianos por forças israelitas? E a enorme favela em que transformaram a faixa de Gaza, negando dignidade a centenas de milhares de palestinianos? Ou a absurda equiparação entre a força e o poder de destruição de um dos mais bem equipados exércitos do mundo com o uso de engenhos artesanais? Tudo em nome de quê? Do mesmo fanatismo que acusam ao Hamas e que serve para alimento mútuo.
A hipocrisia dos apelos à paz, ao fim das hostilidades entre as partes, é parte da tragédia. O mundo não quis saber, os seus dirigentes não querem saber. É mais simples atribuir as culpas a um rocket qualquer do que reconhecer a conivência com o genocídio em curso. Israel quer tornar impossível a existência da Palestina e o mundo lava as mãos como Pilatos.
Biden não renega Trump e continua a aceitar as cedências feitas a Benjamin Netanyahu. A União Europeia está refém do conselho de segurança da ONU onde os EUA impedem qualquer ação. O Governo português envergonhou o país com a submissão à violência de Israel e a rendição à ideia do “ambos têm culpa”. Falta coragem, falta decência.
A construção da paz exige a ação solidária contra a ocupação, uma ação internacional coordenada, o cumprimento dos acordos internacionais firmados e o respeito pelos direitos humanos. Se verdadeiramente se quer evitar a guerra, é este o caminho para a paz.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico