Odemira, (o) capital do século vinte e um
É todo um modus vivendi do sistema condensado num só lugar: imigração convertida num triplo negócio, proletarização extrema do trabalho e da vida e, por fim, negócios privados elevados pelo Estado à categoria de interesse público, construídos em zonas protegidas, que acabam na bancarrota com este último a assegurar as perdas.
Odemira é, neste momento, uma condensação histórico-política sem igual, digna de nota. Para além de tudo aquilo que já ficamos a saber: quer sobre as condições políticas, económicas e sociais dos trabalhadores imigrantes, quer sobre o negócio que se estabeleceu em torno da sua escravidão dissimulada (e sobre o qual escrevi em Odemira: lugar do século vinte e um), ficamos agora também a conhecer um pouco melhor a história do Eco Resort Zmar (a propósito da requisição civil para aí instalar uma parte dos trabalhadores infectados com covid-19): projecto PIN, licenciado com autorizações especiais em Reserva Ecológica Nacional, com direito a financiamento público e fundos comunitários e, agora, em insolvência (com o Novo Banco e fundos abutres à mistura), sendo o Estado o seu grande credor.
É todo um modus vivendi do sistema condensado num só lugar: imigração convertida num triplo negócio (das empresas agrícolas que asseguram mão-de-obra barata, dos intermediários que montam todo um mecanismo de exploração em torno destes “contratos de trabalho”, do próprio Estado que com isto lucra activamente em nome da economia), proletarização extrema do trabalho e da vida e, por fim, negócios privados elevados pelo Estado à categoria de interesse público, construídos em zonas protegidas, que acabam na bancarrota com este último a assegurar as perdas. De um lado: uma força-de-trabalho expropriada de quaisquer direitos laborais, sociais e políticos, uma agricultura industrial intensiva e insustentável e, por fim, um circuito internacional de máfias que fazem das lastimáveis políticas de imigração europeias um negócio (expondo simultaneamente a verdadeira base material desse sonho europeu, digital, social e verde, de que António Costa é tão fervoroso apologista); do outro lado: especulação financeira e investimentos imobiliários ruinosos privados apoiados pelo Estado (que surge sempre na condição de eterno guardião dos negócios do capital). Em suma: capital e trabalho no seu mais alto estado de desregulação e de “liberdade”, formas de vidas reduzidas a mera função de acumulação do capital. O paraíso perdido do modelo político e social da Iniciativa Liberal.
E, no meio disto tudo, como não podia deixar de ser, o sujeito histórico e histérico que faltava, a classe média, sempre a cumprir o papel que lhe cabe: o de peão da história. Se, por um lado, esta aparece prontamente mobilizada pelos valores intocáveis dos “direitos humanos” da propriedade (aos quais se agarra como fundamento de um estatuto social e político cada vez mais debilitado e ameaçado), por outro lado, estes valores não são mais que a vitrine dos interesses reais em jogo do capital, e, neste caso específico, dos interesses das várias empresas (investidores e fundos abutres) presentes no Zmar, para quem a ocupação do espaço pelos imigrantes significa um revés (e, sobretudo, má publicidade) nos seus planos de retorno financeiro a curto prazo.
Podemos falar de individualismo extremo, egoísmo absoluto ou de interesse privado daqueles proprietários, mas nada disso é verdadeiramente extraordinário: estes são indivíduos que se limitam a agir de acordo com os valores e princípios dominantes, sociais e económicos, do capital. O grau de alienação, e diga-se, de hipocrisia, não é apenas dessa classe de pequenos proprietários e das suas instituições (para quem a sociedade, de facto, não é mais do que o conjunto dos seus interesses privados), mas é, também, daqueles, de todos aqueles, que continuando a aceitar na sua plenitude o sistema social do capital, dão-se ao luxo de dirigir a sua infalível crítica moralista e moralizadora.
Em Odemira é tudo menos uma questão de moral: não se trata de empresários eticamente falidos, nem de proprietários gananciosos, nem de classe média egoísta, trata-se da exposição total – e, por isso mesmo, absurda – do princípio que domina e mobiliza a sociedade, a sociedade do capital, com todas as suas contradições e, sobretudo, num grau de crise, cuja sobrevivência parece depender, sempre e cada vez mais, da negação absoluta do estado de coisas presente. E é essa, de facto, a verdadeira catástrofe.