Morreu José Festas, o pescador que um naufrágio transformou num líder
Tenaz, polémico, mestre Festas lutou, desde 2007, pelas condições de segurança dos homens do mar. Estava doente desde Novembro.
Quem o conhecia sabia que só uma doença, ou a morte, o parariam. Entre os amigos e conhecidos, não eram poucos os que discordavam dele, mas, em muitas das guerras em que se meteu, a sua teimosia ou “tenacidade”, para usar as palavras do advogado Abel Maia, levavam muitas vezes a melhor. José Festas, pescador como quase todos os seus contemporâneos de Caxinas, Vila do Conde, morreu esta terça-feira, ao final da manhã, com 58 anos. Um aneurisma hemorrágico pusera-o “fora de jogo”, em Novembro, impedindo-o de assistir à inauguração do seu maior projecto: os armazéns de pesca no Porto de Vila do Conde/Póvoa de Varzim, que continuam em obras.
A vida de Festas, ou Zé Festas, como é conhecido no lugar onde nasceu, mudou para sempre em 2007 com a fundação da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar. O gesto cívico tinha na génese mais um dos incontáveis naufrágios que abalaram a comunidade de Caxinas. No final de Dezembro de 2006, a embarcação Luz do Sameiro afundara-se junto à costa a norte da Nazaré. Dos sete tripulantes, só um sobreviveu. A revolta em relação à eficácia dos meios de salvamento, que emergia a cada acidente, deixou, daquela vez, uma marca mais profunda. Ao longo dos anos seguintes, as tragédias não deixaram de acontecer, mas José Festas tornou-se presença incontornável, em cada praia ou porto, na exigência de melhores condições de segurança para o sector.
Vários projectos de segurança
Não se limitou a reclamar. Abel Maia, advogado vila-condense que logo no momento da fundação se juntou à Pró-Maior (o diminutivo com que Festas cunhara a associação), recorda os projectos, apoiados por fundos comunitários, que permitiram equipar embarcações com dispositivos de sinalização, balsas salva-vidas e posicionamento electrónicos e adquirir vestuário com capacidade flutuante para os pescadores das embarcações associadas. Num sector resistente ao uso de coletes de salvação – que dificultam as manobras de trabalho no mar – a persistência neste tipo de equipamentos já deu frutos em algumas situações de queda ao mar.
“Ele era um homem da pesca que conseguiu perceber o mundo em que vivia e que lutou por projectos em que acreditava”, descreve Abel Maia, admitindo que o espírito perseverante e lutador deste caxineiro, que muitas vezes raiava a teimosia, e a enorme capacidade de trabalho possam, de alguma forma, ter afectado a sua saúde. A associação que criou angariou sócios pelo país, cresceu em importância, número de associados, e influência política: quer localmente, entre Vila do Conde e Póvoa de Varzim – municípios que têm, entre os seus habitantes, a maior comunidade de pesca do país, muito provavelmente – quer a nível nacional.
Ministro destaca espírito lutador
O ministro do Mar lamentou, esta terça-feira à tarde, o desaparecimento deste líder associativo. “Como ministro e como amigo sinto um amargo pesar pela partida de um dos mais prestigiados e empenhados homens do mar e um incansável lutador pela segurança no sector da Pesca. Desde o primeiro dia em que entrei no Ministério que tive a parceria interessada, competente e firme do Mestre José Festas, líder e fundador da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar. Tenho muito a agradecer-lhe e sentirei a sua falta”, escreveu Ricardo Serrão Santos numa mensagem de pesar enviada à família do armador.
Festas não era uma figura consensual, mesmo na sua comunidade de origem. E aqueles que com ele conviveram assumem esse lado menos fácil do armador do Mãe Puríssima, “criador de uma obra com o qual se confundia”, como assume o armador Manuel Marques. “Quando lhe dizia alguma coisa e não concordava, virava-me a cara. Discordava, queria fazer à sua maneira, mas no fim fazia sempre o que lhe pedíamos. O seu temperamento escondia um bom homem e sempre dedicado aos homens do mar e às suas famílias”, descreve, numa nota no seu perfil do Facebook, o actual presidente da Associação de Armadores da Pesca do Norte. Que promete que a classe continuará a lutar pelos objectivos da associação.
Ao longo do fim de tarde e da noite desta terça-feira sucederam-se as mensagens de pesar pela morte de José Festas. Os municípios da Póvoa de Varzim e Vila do Conde publicaram notas nas respectivas páginas oficiais, o Almirante Chefe de Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional recordou e enalteceu o trabalho desenvolvido pelo pescador no incentivo e promoção de “uma cultura de segurança junto daqueles que usam o Mar”. E a secretária de Estado das Pescas, Teresa Coelho, reiterando isso mesmo, assume que perdeu, também, um amigo.
O último projecto
Curiosamente, o último grande projecto em que Festas se envolveu – da cabeça aos pés – pouco tinha que ver com o âmbito mais estrito da sua associação. No mesmo porto em que esta está sediada, na Póvoa de Varzim, mas no aterro sul, já no território de Vila do Conde, a Pró-Maior lidera a construção, apoiada por fundos comunitários, de mais de uma centena de armazéns de pesca para outras tantas embarcações da pesca local, e costeira, quer polivalente quer de cerco. Um projecto também ele envolto em polémicas, mas que está de pé muito graças à insistência do seu criador.
Com ele, algo mudará na paisagem urbana de Caxinas, Poça da Barca, ali defronte, e da zona Sul da Póvoa de Varzim. A comunidade sempre desenvolveu o trabalho de terra – tarefas como o arranjo e manufactura dos aparelhos de pesca – nas casas de mestres e armadores, em garagens ou outros espaços transformados em oficinas. Mas quando a obra estiver concluída, dentro de meses, parte significativa destas empresas familiares passará a trabalhar num espaço comum, no próprio porto a partir do qual uma parte da frota trabalha. Festas, o homem que passava todos os dias para controlar o andamento da obra, já não a poderá inaugurar. A morte levou-o antes do mais importante dia que tinha pela frente.
Notícia actualizada esta quarta-feira, pelas 07h30, com mais reacções à morte de José Festas