Viagem ao Interior: João faz-se à estrada para contar o país enquanto lê e dá livros às crianças
Será como uma biblioteca itinerante, homenagem às saudosas carrinhas da Gulbenkian, e terá um viajante e contador de histórias a conduzi-la. João Ferreira Oliveira vai percorrer regiões isoladas para ler às crianças (e não só). E ensaiar um retrato do país em tempos de pandemia. Arranca a 6 de Maio e a Fugas também vai acompanhar.
Se tudo tivesse corrido como previsto, João Ferreira Oliveira estaria hoje já em território das Aldeias do Xisto. Na “sua” celebração do Dia Mundial do Livro, que seria também a primeira etapa de uma “tentação” a que não conseguiu resistir apesar de, assume, já ter “idade para saber que não vai mudar o mundo, nem os hábitos de leitura dos portugueses”: percorrer o interior do país a contar histórias às crianças, numa espécie de biblioteca itinerante (homenagem assumida àquelas que a Fundação Calouste Gulbenkian teve a circular no país entre 1958 e 2002 - “quem não se lembra delas?”).
“Teria sido um bom começo”, diz, “mas as melhores histórias nem sempre, ou quase nunca, são as mais fáceis e mais bonitas”. Assim, a partida não é a 23 de Abril, mas vai acontecer em menos de duas semanas depois: a 6 de Maio o projecto “Viagem ao Interior (dos livros, das pessoas e do país)” vai “fazer-se à estrada” e durante um mês vai contar histórias aos mais pequenos (e não só) numa carrinha carregada, espera João Ferreira Oliveira, com a capacidade máxima - 500 livros. No regresso, o objectivo é não ter nenhum: são para dar.
João Ferreira Oliveira não é um estranho neste universo - é autor de vários livros infantis (três incluídos no Plano Nacional de Leitura) e tem duas crianças em casa que lhe dão alguma prática na arte de contar histórias. E, sendo jornalista (com longo currículo especialmente nas viagens e envolvido em projectos como a grande Volta a Portugal em 80 dias), também conhece bem o país, nomeadamente o “isolamento e o pouco acesso ao livro por parte das crianças que vivem longe das grandes cidades”. “Realidade que a pandemia veio acentuar”, acredita. A mesma que o deixou, “à semelhança da maioria dos portugueses”, cansado e farto - “da pandemia, das minhas crianças”.
Esta era a desculpa perfeita, assume: “criar um projecto solidário que me deixasse apanhar algum ar”. “O plano inicial era ir para a estrada e limitar-me a ler, conversar sobre livros e usufruir o mais possível do sossego e das características do interior”, conta, “mas à medida que tudo foi avançando, não resisti à tentação de registar um período tão específico como aquele que vivemos”. Assim, a história complicou-se, digamos, e multiplicou-se, passando a incluir quatro pequenos programas (documentários) e quatro reportagens (que poderão ser acompanhadas na Fugas) - um por cada um dos destinos escolhidos.
As Aldeias do Xisto mantêm-se como ponto de partida; seguir-se-ão a Rota da Terra Fria (Trás-os-Montes), o Alentejo Interior e o Algarve Interior. Não é o “interior” inteiro, reconhece João Ferreira Oliveira; esse, diz, “é vasto”. “Vou apenas uma pequena parte, que eu conheço bem e que achei que fazia sentido neste projecto.” A saber: “são sítios distantes, isolados, que sofrem desse ‘mal’ chamado interioridade, mas que têm características muito próprias”, afirma. Na relação com o turismo, por exemplo. “Trabalho há muitos anos nesta área e sei o mal que o turismo pode fazer a um determinado destino. Mas sei também como um turismo responsável pode ajudar a fazer com que uma determinada comunidade não desapareça, a combater o isolamento, a dar mais mundo e mais vida às pessoas que lá vivem. Não vou fazer roteiros, dizer às pessoas onde comer, onde dormir ou o que fazer”.
E, então, não começa esta sexta-feira esta nova versão das bibliotecas itinerantes - as da Gulbenkian acabaram, contudo, sublinha João Ferreira Oliveira, várias permanecem no activo, dinamizadas por câmaras municipais (“gente que faz todos os dias aquilo que eu farei durante um mês”) - porque várias questões logísticas se levantaram, entre elas a prosaica meteorologia (“nesta altura chove nas Aldeias do Xisto”).
Porém, quando finalmente arrancar, a carrinha terá uma maioria de livros para crianças, “mas não só”. “Levo algumas dezenas para os adultos”, nota, porque se o foco deste projecto está na literatura infantil, as portas e as estantes da carrinha estão abertas a toda a gente, “incluindo os mais velhos, aqueles que a par das crianças mais sofrem com o isolamento”. E a ideia é oferecer os livros todos. “Se pedirem um livro eu dou. Se não quiserem, eu dou à mesma. E também vou deixando nas escolas”, afirma João ferreira Oliveira, que comprou alguns dos livros e contou com o apoio de algumas editoras.
Haverá sessões de leitura nas escolas, ao ar livre, no meio da rua, “onde houver público e vontade de ouvir uma história”, refere João Ferreira Oliveira, que estará acompanhado por dois videógrafos. Algumas das sessões já estão marcadas, outras estão a ser marcadas - outras nunca serão marcadas. “É um misto de produção meticulosa e improviso total”, explica, “se não marcarmos nada, muitos dos sítios são tão isolados e têm tão pouca gente que corremos o risco de não encontrar ninguém. Por outro lado, se não houver espaço para o improviso, mais vale não irmos para a estrada”.
A carrinha é branca e está bem identificada: desenhos coloridos, e a identificação do projecto - quem a encontrar, pode ouvir uma história e levar um livro para contá-la.