A histeria colectiva
O sentido da decisão instrutória na Operação Marquês era relativamente expectável. O que pessoalmente já não esperava era um novo desporto: o “tiro ao juiz”.
O sentido da decisão instrutória no processo Operação Marquês era relativamente expectável. Sabia-se que as imputações constantes da acusação não seriam todas sancionadas pelo juiz de instrução criminal (JIC) e que haveria sempre recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL). Também era medianamente previsível que, qualquer que fosse o desfecho provisório desta fase processual, haveria sempre vencedores e vencidos e vozes a clamar num sentido e noutro.
O que pessoalmente já não esperava era um novo desporto: o “tiro ao juiz”. Explico-me: sempre defendi que, como mulheres e homens, os procuradores e os juízes erram e, por isso, existem fases como a instrução – intermédia, destinada a saber se a decisão de arquivar ou acusar é tecnicamente correcta e suportada em indícios suficientes, que a lei define como a probabilidade maior (no caso de acusação) de, em julgamento, o arguido ser condenado e não absolvido – e os recursos para corrigir eventuais erros de interpretação das normas ou fácticos, de tal modo que a Constituição da República Portuguesa garante, pelo menos, um grau de recurso. E, como seres humanos, o produto do seu trabalho – como em qualquer outra profissão – é susceptível de crítica e de comentário.
Simplesmente, tal como não opino sobre se uma cirurgia foi ou não mal conduzida e se se utilizou a melhor técnica, por absoluta incompetência na área, acho curioso que tanta gente, por tantos meios, opine sobre prescrições do procedimento criminal, momento da consumação do crime de corrupção (consumação formal e material), nulidades insanáveis, proibições de prova.
A decisão do juiz Ivo Rosa não é final, como já se percebeu. O Ministério Público anunciou logo – e bem – a intenção de recorrer e alguns arguidos ponderam-no. Até aqui surge uma dúvida: podem este últimos fazê-lo? A lei diz que os arguidos têm legitimidade para tal quanto a decisões contra si proferidas, pelo que entendo que, tendo sido eles a requererem a abertura da instrução, se nos respectivos requerimentos defendiam a não pronúncia quanto a todos os delitos e, mesmo assim, foram agora pronunciados mesmo que por alguns, podem recorrer, pois o seu pedido não correspondeu, na totalidade, ao que foi decidido. No TRL, os desembargadores já estarão a rezar para que, na distribuição, o processo não lhes calhe, pois entre um a dois anos – e provavelmente será necessário pedir ao Conselho Superior da Magistratura que o relator fique adstrito em exclusividade àqueles recursos, como já sucedeu na fase de instrução – é o prazo razoável para se tomar uma decisão justa. São quilómetros de prova documental, milhares de horas de escutas telefónicas, intricadas questões de Direito, tudo a demandar tempo.
Aqui está a causa, penso, da histeria colectiva a que assistimos: fruto das violações do segredo de justiça (que são sempre selectivas e motivadas, não se podendo colocar de fora dos suspeitos quaisquer sujeitos processuais), os cidadãos foram fazendo o seu julgamento, maioritariamente no sentido da condenação. E isto é que não é compatível com a democracia e o Estado de Direito.
Claro que todos podemos ter uma convicção pessoal, mas não nos podemos substituir aos tribunais que administram a justiça em nome do povo. Ou prefere-se que se acabem com os tribunais e o sistema de justiça e o julgamento se faça por um qualquer de nós, sem a formação académica necessária e sem a observância de princípios basilares como o contraditório e a presunção de inocência? Quem agora diz que o sistema de justiça falhou tem de entender que, para já, o sistema está a funcionar de acordo com a lei. Pediram a abertura de instrução e um juiz tomou uma decisão que certamente terá pontos menos conseguidos e juridicamente criticáveis, mas que o fez de modo fundamentado e, por certo, usando as regras da experiência e a sua convicção pessoal, como lhe impõe a lei. E agora aí estará o TRL para decidir – e ainda apenas – quem e por que crimes vai ou não a julgamento.
Já escrevi que, desde a Revolução que nos restituiu a Liberdade, a justiça é, porventura, o domínio em que todos, como comunidade, mais falhámos. Por um conjunto de razões que aqui não cabem, mas também por uma: o poder político não tem pretendido que haja meios suficientes para uma investigação cabal, sobretudo na criminalidade económico-financeira.
Por isso é que mensagens trocadas em certas redes sociais que exigem software próprio para serem desencriptadas não existam ao dispor das polícias ou que não existam meios para, em tempo útil, realizar perícias digitais, em meio informático, cada vez mais essenciais à descoberta da verdade. Por isso também não se entendem os deputados quanto a um há muito reclamado crime de enriquecimento ilegítimo ou quanto a alterações pontuais em sede da separação de processos, pois megaprocessos geram, quase sempre, “mega-absolvições”.
Donde, que o sistema deve ser melhorado ninguém duvida, mas também se sabe como é complexa a prova de crimes como a corrupção, em que existe um pacto de silêncio entre todos. E aqui entra a prova indirecta ou indiciária que é dos temas mais complexos no processo criminal de hoje. Trata-se de partir de um facto conhecido para dele inferir um desconhecido, mediante processos lógico-dedutivos: ex. se alguém é primeiro-ministro, tem influência sobre um júri de um concurso público e pode determinar a decisão final. Basta ler o exemplo para perceber como ele pode violar a presunção de inocência e como, mesmo em termos lógicos, pode ser atacado. E este é um ponto central na decisão instrutória: a maior ou menor relevância e aceitação da prova indirecta, que divide a jurisprudência.
Donde, naturalmente com o direito de se criticar qualquer decisão judicial, impõe-se que não contribuamos para os discursos radicais e populistas que querem acabar com o Estado de Direito e instaurar um Estado-Polícia, autoritário, a que chamam “IV República”, seja lá o que isso for.
Para tal, urge que nos consigamos despir da intoxicação do que vai sendo conhecido aos bochechos e sempre com uma intencionalidade e que confiemos na Justiça, pois ela é constituída por mulheres e homens que não estão ao serviço de interesses políticos, económicos ou outros. E, como em todas as profissões, quando a excepção confirma a regra, o mesmo sistema tem conseguido chegar a eles, como sucede na denominada Operação Lex. O “achismo” é sempre muito perigoso em democracia.