Uma viagem pelas terras do fim do mundo
O leitor Carlos Gouveia da Silva viajou pela Patagónia ao sabor das palavras do escritor Luís Sepúlveda e do fotógrafo Daniel Mordzinski. São as Últimas Notícias do Sul.
Enquanto esta pandemia de proporções bíblicas continua a reter-nos nos nossos espaços domésticos e a possibilidade de calcorrearmos outras paragens não se perfila no horizonte, os livros constituem o refúgio a que sempre recorremos – para fugirmos à realidade, para nos deixarmos levar pelo sonho ou simplesmente para nos reencontrarmos connosco próprios. E há alguns que estão sempre à mão. Últimas Notícias do Sul – saído da pena de um escriba que o vírus nos levou, há cerca de um ano, quando tantas viagens e palavras ainda tinha para partilhar – é um deles.
Em 1996, o escritor chileno Luís Sepúlveda e o fotógrafo argentino Daniel Mordzinski decidiram iniciar uma viagem pelas míticas e ventosas extensões da Patagónia, para depois registar em livro a experiência vivida. A ideia era simples: começariam em San Carlos de Bariloche, desceriam por solo argentino até ao cabo Horn, no extremo sul do continente americano, e regressariam pela Patagónia chilena até à ilha de Chiloé. Cerca de 3500 quilómetros, sensivelmente.
Meteram-se ao caminho e, embora fiéis ao objectivo traçado, cedo verificaram a impossibilidade de cumprir o propósito inicial da viagem: ao fim de um mês, tinham percorrido apenas algumas centenas de quilómetros, tal a forma como tudo o que viram, ouviram, cheiraram, comeram e beberam naqueles “dias de mochila e vento” os obrigou a reter a marcha e a saborear cada momento com a lentidão requerida.
Regressados a casa, Sepúlveda às Astúrias e Mordzinski a Paris, seguiram as suas vidas e, apesar de, por diversas ocasiões, o que viveram nas terras do sul do mundo ter constituído motivo de conversa com amigos e família, o livro ficou em suspenso até ao momento em que, no dizer do escritor, as histórias decidiram “ser palavras no papel”.
Com o título Últimas Notícias do Sul, o relato da viagem surgiu em 2011, pequeno no tamanho e na extensão, revestido, contudo, de uma grandiosidade e de uma beleza únicas, dignas de quem viaja com o corpo, mas observa, vive e regista com os olhos da sensibilidade - esse sexto sentido sem o qual as experiências vividas não têm substância e a vida não faz sentido.
Através de 159 páginas, atravessadas por um texto fluido, límpido e inspirador e por 38 fotografias envoltas pelo mistério que só o preto e branco consegue transmitir, viajamos por um território mágico, agreste e desmesurado, onde, apesar da adversidade e da inclemência do clima, continuam a viver pessoas de carne e osso, de antes quebrar que torcer, que resistem e defendem tenazmente a sua terra como se essa fosse a sua razão de existir.
Histórias tão distintas umas das outras quanto envolventes e inspiradoras, como a do florescimento da quila, uma variedade de bambu andino que cresce, apenas três vezes por século, nos desfiladeiros profundos das cordilheiras; a história da Senhora dos Milagres, uma velhinha de 95 anos que, rodeada de solidão e lonjura, apanhava raminhos secos com a mão e, depois de os acariciar com os dedos, neles fazia surgir pétalas de flor; a de Martin Sheffields, o xerife da agência de detectives Pinkerton que partiu para a Patagónia em perseguição dos lendários assaltantes de bancos e comboios Butch Cassidy, Sundance Kid e Etta Place; a da última viagem de La Trochita, o mítico Velho Expresso da Patagónia; ou a do croata Antonio Radonic e do alemão José Bohr que, nos inícios do século passado, abriram a primeira sala de cinema do fim do mundo - para além de outras narrativas sobre bêbados, gaúchos e duendes.
Lido numa fase da vida marcada por ansiedade, preocupações e naturais expectativas, Últimas Notícias do Sul representou, por isso, uma fuga à realidade, uma possibilidade de genuíno amor à vida, à liberdade, à vontade determinada de partir em busca de novos mundos e de novas realidades. Revisitado várias vezes ao longo dos anos, o seu encanto ainda hoje permanece: condicionado nos movimentos por um ser de dimensões microscópicas, tomo o livro entre as mãos, percorro lentamente as suas páginas e deixo-me levar por essa imensidão austral, por esse mundo que, segundo os seus autores, já não existe como o conheceram, mas por onde espero um dia viajar com os olhos e o coração.
Carlos Gouveia da Silva