Inteligência artificial “não passa ao lado” de Portugal. “Há qualidade, mas falta quantidade”
A saúde é de longe a área onde mais se investiga a aplicação da inteligência artificial em Portugal, mas é preciso pôr mais pessoas a falar sobre os riscos e oportunidades. São essas as grandes conclusões do mais recente relatório da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre esta tecnologia em Portugal.
Já há muito a ser feito em Portugal com inteligência artificial — desde grupos de trabalho universitário para pôr máquinas a pensar como humanos e a procurar os primeiros sinais de doença cardíaca ou diabetes, a empresas que treinam algoritmos a detectar fraude ou traduzir documentos. A saúde é de longe a área onde mais se investiga e tenta aprender a usar inteligência artificial, mas é preciso pôr mais pessoas a falar sobre o tema.
É essa a grande conclusão do relatório Inteligência Artificial: Caminhos e Oportunidades — Uma visão de Portugal, publicado esta quinta-feira pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em Lisboa.
O trabalho, que resulta de mais de 100 entrevistas com profissionais da área, faz parte de um conjunto de outros estudos realizados com o apoio da Google para perceber o estado da inteligência artificial nalguns países europeus. Espanha, Itália e Grécia também devem apresentar resultados em breve.
“O objectivo era tirar uma fotografia do estado da inteligência artificial em Portugal numa altura de grande mudança. E o que vimos é que há muito dinamismo nesta área. Não é de todo um tema que esteja a passar ao lado da academia ou da indústria”, resume ao PÚBLICO João Castro, coordenador do estudo português e professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE).
“Só que embora exista qualidade em Portugal, falta quantidade”, acrescenta o investigador da Nova SBE. “É preciso alargar o debate sobre a inteligência artificial. Particularmente com profissionais de ética e filosofia. A maioria dos participantes no estudo sugeriu um debate social em larga escala.”
Só assim, explica João Castro, é que se pode perceber os riscos, oportunidades e impactos da área. Em Portugal, os sectores da saúde, retalho e banca são aqueles onde surgem mais projectos com inteligência artificial. “São uma espécie de top três”, admite João Castro.
“Só que na área da saúde e da banca é preciso muito cuidado com o tratamento dos dados porque envolvem, frequentemente, informação sensível”, nota o investigador. “A banca, por exemplo, lança poucos produtos e serviços com inteligência artificial porque está em compasso de espera. Investiga-se, mas não se experimenta por medo de nova legislação que possa surgir.”
Portugal segue cautela europeia
Por ora, Portugal parece seguir o modelo Europeu de cautela face à inteligência artificial.
Sem grandes gigantes tecnológicas para recolher dados — base fundamental para ensinar máquinas a decidir e trabalhar sozinhas —, o actual foco da União Europeia é liderar na criação de sistemas em que os utilizadores podem confiar. E com o Regulamento Geral de Protecção de Dados, em vigor desde 2018, os cidadãos europeus podem pedir às empresas para revelar ou apagar todos os dados que têm sobre si.
“É um modelo que começa a ser defendido noutros países, incluindo nos Estados Unidos, por causa do abuso de dados de algumas empresas. Mas é preciso evitar o excesso de cautela”, sublinha João Castro. “As empresas precisam de ser treinadas com dados e se existirem demasiadas limitações, a Europa vai ficar para trás porque não consegue alimentar as suas máquinas.”
Nos últimos meses, a pandemia da covid-19 veio acrescentar ainda mais o interesse na área. “Ainda é cedo para perceber se o novo coronavírus alterou o rumo da inteligência artificial, mas nota-se vontade de experimentar coisas novas”, explica o investigador. “Há mais disponibilidade das empresas para inovar. E por isso é fundamental alargar o debate.”