“O regime levou tudo” mas os sírios ainda preparam o futuro

A Síria revoltou-se e a dimensão da resposta foi tão avassaladora que às vezes parece ter sobrado pouco. Mas nenhum regime dura para sempre. “Serão precisas várias gerações para sarar”, mas quem sobreviveu não desiste.

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Uma criança dorme numa mala em Beit Sawa, Ghouta Oriental, um dos subúrbios de Damasco, em 2018 OMAR SANADIKI/Reuters

Ao contrário que acontecia em vários dos países árabes que viveram revoltas ou amplos movimentos de protesto no início de 2011, para a esmagadora maioria dos sírios a crítica ao regime não era uma opção. Muitos dos que se juntaram à revolução contam como só nesses dias perceberam que os próprios pais não estavam contentes com a vida que tinham.

“Estávamos em silêncio mas nenhum sírio podia mais”, disse-nos Amani, síria refugiada na Jordânia que em 2011 tinha 28 anos. “Nem queria acreditar quando os meus pais começaram a dizer mal de Bashar e do pai. Explicaram-me que nunca tinham dito nada porque que tinham medo que nós soubéssemos que a vida não era boa.”

Para os sírios, a descoberta de liberdade foi extraordinária. E a forma como o regime de Bashar al-Assad respondeu a essa descoberta foi inimaginável. Passaram dez anos, é difícil recordar tudo em pormenor. Kholoud Helmi, jornalista, conta que decidiu participar no documentário Cries from Syria, de 2017, precisamente para não esquecer. “É a minha história. E aconteceram tantas tragédias, tantas atrocidades, às vezes parece que nos vamos esquecendo das anteriores. Há sempre uma tragédia nova.”

Tem sido assim a vida de sírio. De massacre em massacre, da repressão à política de terra queimada, das bombas-barris (barris, de petróleo ou garrafas de gás cheios de explosivos e fragmentos de metal) aos ataques químicos, dos doenças e do frio aos cercos destinados a matar cidades inteiras à fome. Nos últimos dez anos morreram cerca de 500 mil sírios, 6,5 milhões abandonaram o país, 100 a 250 mil foram detidos ou desapareceram.

Helmi estava na Síria quando a revolta começou. Aos 26 anos, na sua cidade dos subúrbios de Damasco, Darayya, já tinha ouvido falar dos massacres de 1982, quando as forças governamentais cercaram a cidade de Hama e mataram pelo menos 30 mil pessoas para esmagar uma tentativa de insurreição da Irmandade Muçulmana. Mesmo assim, entusiasmada pelo que via estar a acontecer na Tunísia, no Egipto ou no Iémen, decidiu participar numa manifestação, a primeira de que soube, em Damasco.

Não era muita gente. Quem estava cantou, nem sequer gritou. “Liberdade”, “mudança”, nem sequer “o povo quer a queda do regime”, a frase que haveria de repetir-se por todo o país. Bastou isso para sentir que “flutuava”. Hoje, não tem como saber se foi nesse momento que se entregou à revolução, se foi mais tarde, quando os amigos começaram a ser mortos e a desaparecer.

Rafif Jouejati não estava na Síria, aliás levava uma vida “ocupada com tudo que não tem a ver com a Síria”. A empresa de consultadoria de gestão, o casamento, os dois filhos nascidos nos Estados Unidos. Nos anos anteriores tinha acreditado, como tantos, que “o popular Bashar al-Assad, aquela figura educada no Ocidente, ia trazer mudanças”.

“Tenho ideia que foi durante uma manifestação em Daraaya a primeira vez que dispararam munições reais. Eram miúdos, adolescentes. E eles dispararam, não foram balas de borracha, não foi gás lacrimogéneo, foram balas reais”, diz. Para Jouejati, foi nesse momento que percebeu que não podia ficar parada. “E quando nos juntamos a um movimento deste tipo com um regime assim não se pode estar meio dentro e meio fora. É tudo ou nada. No meu caso foi tudo.”

Começou por trabalhar com os Comités Locais de Coordenação, a rede de grupos locais que nasceu por todo o país para organizar os protestos, depois a resistência. Primeiro foi tradutora, depois porta-voz, entretanto aproximou-se dos dirigentes, “principalmente de Razan Zeitouneh”, desaparecida desde Dezembro de 2013, foi assumindo projectos cada vez maiores e juntou-se à direcção dos comités.

Os dias bons

“Esses eram os dias bons. Quando ficávamos devastados se morressem 20 pessoas, quando a maioria dos activistas ainda acreditava em manifestações pacíficas, quando a criatividade dos sírios era assombrosa”, diz. Jouejati ainda acredita na resistência pacífica e hoje dedica-se, em parte, a tentar fazer passar estratégias de não-violência para dentro da Síria.

Percebe que “o regime militarizou tanto a resposta que as pessoas tiveram de se defender”, sabe que “usou tácticas destinadas a promover sentimentos de vingança, castigos colectivos, para além de enviar infiltrados para os protestos, de provocarem divisões”. A verdade é que “era isso que o regime queria”, “era uma armadilha à qual não se podia fugir”.

Os sírios revoltaram-se, depois resistiram. Quando lhes entraram em casa pegaram em armas para salvar os filhos. Foi assim que Taman Esselum, professor de Árabe tornado resistente em Hama, membro dos Comités Locais, nos explicou, em 2012, durante uma viagem à Turquia, para pedir ajuda à oposição no exílio. “Assad é estúpido, mas não é louco. O problema foi que o mundo lhe deu luz verde para nos matar. Revoltámo-nos contra Assad. Mas afinal temos de derrotar o mundo todo.”

Jouejati sabe que foi assim. Acompanhou de perto o processo de negociações patrocinado pela ONU, esteve nos encontros de Genebra. Viu como o regime “assinava documentos e ainda a tinta não tinha secado já fazia cercos para matar comunidades à fome”. Como “a comunidade internacional começou a ficar dormente, como se se tivesse instalado uma apatia e toda a gente ficasse paralisada”. A seguir, viu como “o ónus da prova deixou de estar do lado do regime e passou para os activistas, e isso foi devastador”.

Milhões de workshops

Entretanto, a diáspora não parou de crescer. Helmi está em Istambul, para onde o jornal que ajudou a fundar na Síria, o Enad Baladi se mudou, em 2014. Jouejati está em Madrid, é responsável do Partido Liberal Sírio na Europa e colabora com várias organizações. Defende que os EUA, a União Europeia e a ONU “podiam ter encontrado formas de pressionar a Rússia, de negociar com o Irão”. Em vez disso, “disponibilizaram ajuda humanitária e muita assistência em termos de construção de capacidades e treino, milhões de workshops…”, afirma. “Agora temos milhões de sírios peritos em sociedade civil, só não temos um país.”

Nem uma nem outra desistiram de uma nova Síria. Mesmo se às vezes parece ter sobrado pouco. “Às vezes perguntam-me o que é que os sírios precisam. A resposta é tudo. Tudo nos foi levado, o regime levou tudo, com mundo a assistir. Por isso, agora precisamos de tudo”, diz Jouejati.

Como vários analistas, Jouejati acredita que o regime está cada vez mais sozinho e fraco. “Agora temos agitação civil na Rússia, o Irão tem problema gigantesco com a covid-19, muita gente com fome, a viver nas ruas, está a ferver”, enumera. “Depois da pandemia, ninguém vai poder gastar dinheiro”, concorda Marwan Muasher, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia, actual vice-presidente de Estudos do Programa do Médio Oriente do think tank Carnegie Endowment for International Peace.

“Quando o regime se vir completamente sozinho vai entrar em colapso”, diz Jouejati. E é aí que os milhões em workshops podem fazer a diferença. “A dimensão do trauma é indescritível, serão precisas várias gerações para começar a sarar”, admite. “Mas os sírios têm amadurecido politicamente. Trabalharam os conceitos de liberdade, de democracia. Vamos ter de criar uma democracia nova, a partir da cultura síria. Vai demorar, mas vamos lá chegar. Temos é de dar o primeiro passo, vermo-nos livres do regime de Assad.”

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