Carlos Antunes: “O medo vai ter de voltar”

Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pede um “fecho integral” e mais rastreio e testagem. É preciso mais e melhor do que fizemos em Março.

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Ricardo Lopes

Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, estava habituado a fazer previsões sobre o dramático efeito das alterações climáticas. Agora tudo o que faz é sobre covid-19. Em entrevista ao PÚBLICO no dia em que o Governo anunciou que iria fechar as escolas depois de vários dias de hesitação, o investigador constata que andámos a perder tempo, que já perdemos o controlo. "Nós estamos a caminhar para o caos, deixámos de controlar o sistema. O sistema é que nos está a controlar a nós”.

Devíamos fechar tudo. Não só as escolas, mas parar as fábricas, a construção civil, o take away dos restaurantes, tudo. E testar mais, muito mais. E, mesmo assim, avisa Carlos Antunes, convém estarmos preparados para os murros no estômago que aí vêm, nomeadamente com a chegada da variante do Reino Unido e das outras. Perdemos tempo e cometemos erros em cima de erros. Mesmo quando, no início de 2021, uns diziam que não existiam dados para avançar com medidas, já existiam alertas mais do que suficientes, confirma o especialista. Talvez só agora os portugueses sintam que lhes “estão a pisar os calos” e as coisas mudem. Talvez agora o medo volte. É isso que é preciso, diz o investigador que se confessa quase tão triste como preocupado e que espera agora que os portugueses tenham medo, tenham muito medo. Muito mais do que tiveram em Março.

A novidade do dia é o fecho das escolas. O que é que isso muda?
Em princípio, do ponto de vista teórico, todos os contactos que sejam reduzidos vão ajudar. Estávamos com uma redução da mobilidade muito baixa, uma redução de 30% no fim-de-semana e depois de 10% no início da semana. O fecho de escolas obrigatoriamente vai reduzir essa mobilidade e os contactos. O que se sabe, pela monitorização noutros países, é que reduzir os contactos vai ter um impacto.

Qual?
Vai depender da dimensão das medidas. É só as escolas ou vai haver mais medidas? Penso que devem vir aí mais medidas. O objectivo será exactamente tentar ter pelo menos o impacto que tivemos em Março. Contudo, nós já sabemos que o impacto de Março é insuficiente. Os médicos estavam preparados para oito semanas para conseguirmos chegar ao nível de Natal. O que estamos a observar é que essa trajectória afinal não é de oito semanas, mas pode ser de dois meses e meio, três meses. Portanto, temos de conseguir melhores resultados do que tivemos em Março.

Como?
Tem de ser uma coisa mesmo integral. Não sei ainda o que vai sair hoje do Conselho de Ministros, mas acredito que seja uma coisa mesmo integral.

O que é isso de uma coisa mesmo integral? Que tipo de medidas?
Daquilo que vejo nos outros países, só permitir a saída de casa mesmo só exclusivamente para aquilo que é essencial e só uma pessoa de cada casa. Não ter ninguém na rua. Nem os passeios higiénicos, mesmo esses têm de ser mínimos e à volta de casa. Houve países que puseram uma limitação a cinco quilómetros. A questão é que, ao nível de incidência em que nós estamos, temos de fechar tudo o que seja possível.

Fecho integral também devia incluir o take away dos restaurantes?
Acho que sim.

E o trabalho, há pessoas que não podem fazer o seu trabalho à distância...
Se é um serviço mínimo, a questão, por exemplo, da cadeia de distribuição de produtos essenciais para os mercados tem de se manter.

Mas há fábricas...
Exacto. Ou a construção civil. Há um conjunto de actividades que podem ser fechadas durante uma semana ou 15 dias. Porque enquanto não conseguirmos reduzir ao máximo os contactos não conseguimos trazer a incidência para baixo. Ela está muito elevada. Isto está disseminado por todos os concelhos. O mapa está quase todo vermelho. O vermelho quer dizer que praticamente existe uma pessoa em cada 100, 1% das pessoas estão infectadas. E vimos pelo gráfico dos grupos escolares que a partir dos 12 anos têm uma incidência acima de mil. Passámos o limite. O problema é que agora não queremos aceitar estas medidas drásticas, mas não compreendemos que fomos além daquilo que podíamos ter ido. Se tivéssemos conseguido antes do Natal trazer a incidência para mil, tudo bem. Mas não conseguimos. Partimos de um patamar elevado. Deixámos que a terceira vaga partisse de um valor muito elevado.

E agora?
E agora ainda temos o problema da nova variante. Sabemos que no final do mês vamos ter 60% de contágio com a nova variante.

Vai tornar-se dominante...
Sim. E repare o que é que significa uma variante que aumenta a sua carga viral no trato respiratório superior em 32 vezes. Quando expiramos, expiramos 32 vezes mais partículas virais do que nas variantes anteriores. É isso que dá essa capacidade de ser mais transmissível. Com esta variante a circular, isso não vai permitir reduzir a incidência a níveis que necessitamos.

E é por isso que precisamos do tal fecho integral?
Sim. Mas não só. Embora existam pessoas que são contra e que dizem que é impraticável porque não há recursos, a única forma é também duplicar, triplicar ou quadruplicar a capacidade de rastreio, inquéritos epidemiológicos e testagem. Estávamos quase a enveredar por ir para as escolas testar os alunos todos. Isso é uma testagem aleatória e com isso não se encontra quase nada. Foi o que demonstrámos no Natal. Aquela corrida aos laboratórios não alterou a curva de casos. Ao passo que os 25 mil testes que fizemos a menos do rastreio epidemiológico no Natal levaram a cinco mil casos que nós perdemos e que criaram cadeias de transmissão. A testagem tem de ser feita de forma criteriosa.

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Os autotestes podem ser uma solução?
Se tiver um custo baixo podemos fazer. Podemos disseminar e isso vai acontecer. Mas primeiro é preciso escalar essa capacidade. Mesmo do ponto de vista estratégico de controlo, estarmos a fazer um teste aleatório a uma pessoa qualquer em cada mil testes aleatórios que a gente faz à população vamos encontrar o máximo de 15 pessoas porque isso é a prevalência da doença actualmente, é 1,5 pessoas. Mas por cada mil testes que faço a pessoas suspeitas, identificadas no inquérito epidemiológico, já vou encontrar 200 ou 250 pessoas infectadas. Está a ver a diferença de eficácia?

E temos capacidade para duplicar, triplicar a capacidade de rastreio e testagem?
Actualmente não temos porque não foi planeada. Mas não percebo porque é que ainda não se falou em aumentar significativamente a capacidade de testagem. O problema é que quem faz inquéritos tem de ter formação específica e isso é uma coisa que leva tempo. E porque leva tempo devíamos ter pensado “OK, quando ultrapassarmos X número de casos por dia temos de aumentar 50% a capacidade”. Ninguém pensou nisso.

Ainda vamos a tempo?
Não sei, mas quando estamos em guerra qualquer arma serve. E se sabemos que essa arma é também eficaz ao mesmo tempo que o confinamento, já devíamos estar a fazer isso.

Estamos a perder tempo?
Estamos a perder tempo. Nós não sabemos qual é a parte desta variante e não sabemos quando chega a variante do Brasil e da África do Sul. Hão-de chegar. E elas fazem um cocktail perfeito. Portanto, nós temos de preparar sempre com antevisão. O problema do nosso país é não ter uma visão estratégica, a longo prazo, e não ter pensado por exemplo no Verão: então quais são as possibilidades? Podemos ter uma segunda vaga, uma terceira vaga... Quais são as dimensões? Eh pá, hipoteticamente pode ser cinco mil, mas pode ser dez mil... E qual é o máximo? É X. Então vamos ter um plano para X.

Um plano para nos prepararmos para o pior?
É isso que faz em análise de risco. Essa é a minha especialidade actualmente. Trabalho também na avaliação de emergência climática e é isso que se faz. Se estivemos preparados para o pior, mesmo que isso tenha tido algum custo, o dano que causamos é menor do que se não estivermos preparados. É isso que se fala nas alterações climáticas. O custo de nada fazer é muito, mas muito superior ao custo de fazer exagerado. É claro que no lado da economia se vê mais a curto prazo.

Neste momento, mais vale pecar por excesso?
Claro. Isto é matemático. Existe uma área da matemática especializada nisto. Face a uma ameaça incerta e com elevado risco, a melhor estratégia é a acção imediata. Popularmente já o sabemos: mais vale prevenir do que remediar. Toda a gente sabe isso. Portanto, face a uma dimensão destas e face à situação em que já estávamos em Novembro e Dezembro nos cuidados intensivos e nos internamentos, a acção tinha de ser aí. Já se tinha que planear ter capacidade de rastreio. Estamos com uma capacidade de rastreio que foi escalada para Novembro. É insuficiente… Enquanto outros países, a Irlanda, por exemplo, conseguem trazer de sete mil casos para dois mil casos numa semana. Fecharam integralmente. Não víamos ninguém na rua. E claro aumentaram a capacidade de testagem, a Dinamarca faz a mesma coisa, a Áustria fez...

De acordo com seus modelos, reduzindo os contactos com um fecho integral e aumentando a capacidade de rastreio, quando e como teremos um impacto?
Não sei. O meu modelo não pega nessas variáveis. Esses são os chamados modelos não lineares e são muito sensíveis. O meu modelo é um bocadinho mais heurístico, de optimização matemática. Só consigo fazer isso quando a curva der sinal de que está a achatar. Aí eu posso simular. Mas não sei se essa curva que eu vou definir consegue reproduzir essas condições que estou a pôr agora.

Então, saindo um pouco do rigor...
O que sei é que se nós continuarmos assim conforme estamos, só iremos regressar a níveis de pré-Natal lá para fim de Março ou Abril. O meu modelo diz-me Abril.

Como é que as medidas tomadas agora de fecho das escolas, por exemplo, podem antecipar essa situação?
Podem. Podem regressar ao primeiro cenário que nós temos. Que era conseguirmos isso em oito semanas.

Mas o cenário que me falou, por exemplo da Irlanda, que seria passar de sete mil para dois mil casos diários numa semana não seria ainda possível?
Era preciso ser uma coisa integral. Seria aquilo que eu estava a dizer. Se nós cumprirmos aquilo que os irlandeses conseguiram, provavelmente talvez em menos de três semanas estaremos nos níveis do Natal ou abaixo disso. Se as medidas efectivas, ou seja, toda a gente cumprir rigorosamente e ninguém furar o esquema, ninguém se descurar da sua responsabilidade. Sabemos que há pessoas que estão infectadas e que deviam estar em casa e não estão.

E há pessoas que nem sequer sabem que estão infectadas...
Exactamente. E a questão a testagem pode resolver esse problema. Porque quando aumentámos a testagem em final de Setembro, princípio de Outubro começámos a apanhar cada vez mais assintomáticos. O rácio entre sintomáticos e assintomáticos começou a inverter. E foi graças a isso que conseguimos desacelerar o crescimento e do meu ponto de vista essa foi a principal razão para conseguirmos achatar em Novembro. Claro que as medidas vieram reforçar, foi a machadada final, mas já estávamos a fazer o serviço. E o serviço foi testagem.

Mas o pára-arranca de Novembro não foi também um pouco prejudicial?
Sim... e há outra coisa que eu defendo que é: o sistema de rastreio vai atrás da incidência. A incidência aumenta e o rastreio faz mais testes. A incidência diminui e faz menos. O que, do meu ponto de vista, é errado.

O Ministério da Saúde tem dito que os testes aumentaram...
Pois, porque os testes vão atrás. E o que estou a ver é que vão atrás a uma velocidade muito inferior à infecção. Aquela imagem que dou: isto é uma corrida. O vírus vai à nossa frente e vai infectando pessoas. E nós vamos atrás dele detectando pessoas com o nosso sistema de rastreio. Se a nossa velocidade de detectar é inferior à velocidade com que o vírus infecta pessoas, então a vantagem que ele nos leva vai aumentando cada vez mais e nós para reduzir essa vantagem temos de correr mais rápido que ele. Temos de testar e identificar casos mais rápido do que está a infectar pessoas. Esta é a estratégia. Para nós reduzimos a vantagem que hoje ele nos leva, a outra é aplicar medidas para reduzir a própria velocidade do vírus. Essas medidas são confinamento, redução de contactos e protecção individual. Redução de exposição ao vírus. Não posso apostar só numa medida. Só conseguimos chegar ao pico da onda quando estivermos a captar exactamente o mesmo número de casos que o vírus está a contagiar.

Os vossos modelos dizem quanto?
Sim, estimamos isso e são os 2500, 2700 casos por dia que estamos a perder. E que 60 a 70% serão casos assintomáticos.

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Neste momento, nessa corrida a vacina é uma meta que está muito ao longe?
Exactamente. Isso vai depender ainda da velocidade com que chegam as vacinas e da velocidade com que se vacinem as pessoas. A esperança é que lá para o final do Verão tenhamos imunidade e vamos começar o Outono já não com uma epidemia mas com surtos. Os efeitos poderão começar a sentir-se numa redução de letalidade e internamentos lá para Março. Na incidência só mesmo lá para Maio, Junho. Temos de fazer o trabalho até lá e isso é uma maratona para o SNS.

Na corrida, o vírus ganhou uma enorme vantagem este mês?
Sim e eu consigo calcular essa vantagem. No início do ano, a vantagem do vírus relativamente ao nosso sistema de rastreio era de 400 casos por dia que nós não apanhávamos. A diferença entre o número de contágios e o número de casos identificados era de 400. Essa vantagem foi aumentando 600, 800, mil... e está agora, o máximo que eu vi foi de 2800, perto de 3000 e agora estabilizou. Esta vantagem tem de diminuir. Há outro indicador que me diz exactamente a mesma coisa: a distância a que estamos do vírus. É a taxa de aumento de casos diários que depois se converte em número de dias de duplicação de casos. Nós conseguimos calcular quantos dias leva até duplicar o número de casos por dia. Portanto, estamos com 15 dias.

Ou seja?
Se isto se mantiver, daqui a 15 dias teríamos 24 mil casos por dia e daqui a 30 dias teríamos 48 mil. Mas essa variável varia muito, é muito dinâmica. Portanto, nós sabemos que isso é meramente hipotético, não vai ocorrer. Mas esta variável tem de reduzir e chegar a zero. Foi o que aconteceu em Novembro. Em meados de Novembro, essa decalagem era zero e depois ficou negativa porque logo a seguir ao período do pico nós estávamos a identificar mais casos do que aqueles que estavam a ocorrer.

Como assim?
Porque estávamos a detectar casos anteriores. E quando isso acontece é quando nós estamos a avançar mais rápido do que o vírus e ganhamos a corrida. E temos de mantê-la.

Devíamos ter mantido o ritmo?
O nosso problema do ponto de vista epidemiológico, e esse foi o erro a seguir a Novembro, foi não ter mantido esse distanciamento, esse avanço sobre o contágio do vírus. Não só baixamos a guarda nas nossas defesas, nos contactos, como baixamos a guarda no rastreio epidemiológico. Os critérios para a testagem e para considerar um contacto de risco não podem ser rígidos. Têm de ser dinâmicos. Repare, nós chegámos aos 42 mil testes diários por semana em média, atingimos o pico em Novembro e depois começámos a baixar.

Isto parece a história da lebre e da tartaruga...
Exactamente! Nós não podemos deixar dar avanço ao vírus. Temos de ser nós a correr à frente. Defendo isto há bastante tempo.

E?
Há uma inércia muito grande a responder a esta arma que temos e que nós vimos nos outros países. Começámos a ouvir em Setembro os ingleses a falar em testes massivos. E vimos noutros sítios. Há um indicador que é a positividade e a Organização Mundial da Saúde tem uma recomendação, a positividade tem se ser mantida abaixo dos 5%

Num artigo recente referia que estava nos 17% em Portugal...
Já estamos em 19%. Ontem chegámos a 19%. Contudo, já ultrapassamos os 62 mil testes por dia, está a ver? Só que a velocidade com que estamos a andar é insuficiente.

Andamos de facto, como já disse, a perder tempo?
Completamente. No Verão fazíamos 20 mil testes e nessa altura detectávamos quê? 300 ou 400 casos. Agora temos 12 mil casos e fazemos 62 mil testes no máximo... Devíamos estar a testar dez vezes mais...

Tem-se falado muito da imprevisibilidade desta epidemia. Diz-me que nos devíamos ter preparado para o pior. Afinal, era possível antecipar tudo isto?
Sim, o que eu vejo aqui de erro sistemático é... quem decide... bem… nós estamos a aprender. Todos estamos a aprender com uma coisa que aconteceu há cem anos e não temos grandes registos. Hoje temos uma ciência que faz uma monitorização destes fenómenos naturais com outro detalhe e com outro rigor. Não tínhamos essa experiência de planeamento. Estamos muito mais sofisticados, mas mesmo assim não tínhamos conhecimento. Quem estudou a fundo conhece a dinâmica e sabe os vários processos que a epidemia tem para proliferar. E consegue e vai estudando e comparando com os vários países. E depois há o próprio comportamento das pessoas. A própria estrutura social de um país tem influência. A própria cultura e a própria responsabilidade. Não posso comparar uma Suécia ou uma Áustria com Portugal, são coisas completamente diferentes. Não só do ponto de vista organizativo, de compromisso e de responsabilidade... Somos diferentes.

Não somos responsáveis?
Só somos responsáveis quando, de facto, nos pisam os calos. Quando nos pisam os calos e nós sentimos a dor, a gente reage e responde e aí somos exímios. Ou seja, no limite, somos os maiores de todos, mas nós temos incapacidade de saber é qual é o limite. Numa situação de pressão somos os melhores.

O que é que é preciso fazer para pisar os calos dos portugueses?
...deixe-me só a acabar. O nosso erro foi a falta de compreensão da dinâmica da infecção. Subestimámos a perigosidade da infecção e não conseguimos planear e perceber qual era a importância das armas que temos ao nosso dispor e não as planeámos devidamente. Do meu ponto vista, o principal erro foi o país não ter posto um limiar de incidência diária. Se o país tivesse posto um limiar, imaginemos que era três mil casos diários. Não podemos ultrapassar os três mil casos diários. Não é quando chegarmos aos três mil agimos, mas quando vemos que vamos atingir isso daqui a uma ou duas semanas, actuamos logo para nem sequer lá chegar.

Esse era o limiar?
Esse é o que defendo. Porque esse dava 1500 internamentos e 200 ou 220 camas de cuidados intensivos, podíamos chegar às 300 camas. Sei que nesses processos complexos, não lineares, nós perdemos o controlo facilmente. Como tem muitas variáveis, tentamos controlar todas variáveis, mas se há uma em que a gente se descuida, como acontece nos incêndios, é o suficiente para perdemos o controlo do incêndio. Devíamos ter definido um limiar apontando para o ponto que não podíamos ultrapassar nem lá chegar, tínhamos de agir antes. Nunca tivemos essa estratégia.

Mas aí não estávamos a pisar os calos aos portugueses porque estávamos a agir antes disso...
Pois. Essa é a resposta que me dão. “Tu não ias conseguir convencer ninguém com essa estratégia.” Portanto, isto mostra a capacidade organizativa de um país perceber isso ou não perceber. E é por aí que falo da diferença entre países

E ainda vamos a tempo de os convencer?
Não, não vamos. Nós perdemos o controlo. O que é esta coisa dos sistemas complexos, chamados sistemas caóticos? São aqueles que devido a uma instabilidade podem ser conduzidos para o caos. Estamos a caminhar para o caos, deixámos de controlar o sistema. O sistema é que nos está a controlar a nós. Temos uma incidência extremamente elevada, temos uma variante que está a caminho e que em Lisboa e Vale do Tejo deve ter agora já 30% de prevalência. Daqui a três semanas estará a 60% no país. Podem ainda existir outras variantes e que vai contaminar mais 50% de casos do que esta variante. É o efeito cascata. O que é isso? Temos um impacto e estamos a preparar e tentar ajustar a esse impacto e logo a seguir levamos outro e depois levamos outro...

Como no boxe?
Exactamente. Este mês vamos levar dois murros no estômago. Estamos com esta incidência e letalidade e daqui a duas semanas vamos levar com a nova variante. Portanto, perdemos o controlo. E nestas situações de catástrofe, estas situações extremas, temos de manter sempre o controlo e, para isso, temos de ter essa visão de longo prazo, mesmo que as medidas que a gente aplique sejam exageradas. Pelo menos preparam-nos para o pior e conseguimos evitar o pior. É assim que se vê as grandes sociedades organizadas e não organizadas. Aquelas que se baseiam no conhecimento rigoroso e aquelas que não se baseiam no conhecimento rigoroso.

E agora? Agora vamos pisar os calos dos portugueses?
Agora os portugueses vão sentir.

E então vamo-nos portar melhor?
Quero acreditar nisso. O medo vai ter de voltar. Só com o medo é que nós agimos em Março. Foi um medo exagerado, mas que foi suficiente para nos proteger. O medo é uma forma de prevenção. Uma criança, por exemplo, tem de aprender a ter medo porque é isso que a protege. A humanidade e todas as espécies desenvolveram esse instinto, esse sentimento, essa protecção. O problema é que nós numa sociedade tão sofisticada, tão moderna, achamos que isso é do passado, é uma coisa antiquada.

Pelo meio temos ainda as eleições...
Pois... Mas acho que as pessoas vão ter cuidado quando forem votar. Se toda a gente se proteger como deve ser, se toda a gente levar a máscara como deve ser, desinfectar as mãos como deve ser, levar a sua caneta... Em princípio, hipoteticamente não haveria aumento de contágio. Mas sabemos que há sempre descuidos e o vírus está sempre à espreita de uma oportunidade. Estimamos que teremos cerca de 360 mil pessoas isoladas nesse dia, os infectados activos e os que estão em vigilância.

Neste momento está mais triste do que preocupado?
Estou muito preocupado mas a tristeza começa-me a invadir. Antes existia a preocupação porque eu antevia essas coisas. Mas o que me entristece é confirmar aquilo que eu suspeitava há 15 dias e o que iria acontecer nos hospitais. Quando o Presidente da República disse que ainda não tínhamos dados...

Já tínhamos?
Eu só publiquei nas redes sociais que estávamos na terceira vaga no dia 1 de Janeiro, mas soube antes. Monitorizei as terceiras vagas nos outros países e percebi a dinâmica. E portanto consegui captar qual era o sinal. Mas as autoridades continuavam a dizer que ainda não tinham informação quando já havia especialistas que já sabiam que estava a começar uma terceira vaga e com características completamente diferentes da segunda. Com uma subida muito mais repentina e muito mais exponencial. E obviamente sabíamos que isso iria disparar para os 10, 12 mil. Depois começo a ver nos hospitais, os óbitos a responder rapidamente. Os óbitos começaram a subir logo depois da incidência, coisa que nunca tinha acontecido. Os internamentos começaram a subir seis dias depois. Foi uma resposta muito mais rápida. Só esses dois indicadores já diziam que gravidade era elevada. Elevadíssima. E já sabíamos que ia cair a variante. Comecei a fazer simulações logo em Novembro para a variante aqui em Dezembro e encontrei mais 40 a 50% de casos. Em vez de 3500, tinha cinco mil.

O que é que isso significa agora?
Agora, com esta variante, com mais 50%, nós vamos passar para 20 mil casos.

Em Fevereiro?
A nova variante tem a capacidade de infectar, em média, 56% mais pessoas. Se no final de Fevereiro a variante estiver dominante, o número de infecções em Fevereiro é 50% superior. Se, por exemplo, estivermos em Fevereiro com 17 mil casos, esta variante vai fazer subir para mais de 25 mil casos por dia.

E isso mesmo que se feche tudo?
O fecho integral pode ser uma almofada que tente amortizar o impacto desta vaga da nova variante. Temos de fazer tudo para retardar a entrada. Ela vai entrar, mas era bom que entrasse devagarinho, mais suave e que entrasse quando tivéssemos um número de casos muito baixo. Mas nós não estamos. A Irlanda que estava com 700 casos passou para sete mil casos em poucos dias. A positividade que estava controlada e estava à volta de 5% disparou para 20%.

O que pode acontecer se não optarmos por medidas radicais?
Vamos prolongar esta vaga no tempo.

E o SNS aguenta?
Não, não aguenta. Os médicos estavam preparados para oito semanas. Se forem dois meses ou três... Não aguenta. Mesmo com oito semanas nós já estamos mesmo a inventar.

Chegou finalmente a altura em que vamos dar um murro na mesa?
Claro, mais vale tarde do que nunca. Em vez do princípio “mais vale prevenir do que remediar”, estamos a optar pelo “mais vale tarde do que nunca”. No meu ponto de vista, a economia sofreria menos se tivéssemos apertado logo no início com um confinamento de 15 dias e estaríamos agora a respirar. A economia está a cozer em lume brando.

A morrer em lume brando?
Isso. A morrer em lume brando.

Não fique desmotivado e não deixe de trabalhar...
Eu já não tenho medo de nada. Às vezes temos medo que nos deixem de mandar os dados da DGS se a gente falar de mais. Mas eu já não tenho medo de nada disso. Já entrei numa espiral que sei que temos mesmo de acordar a consciência das pessoas.

Infelizmente, não têm boas notícias para dar...
 Não temos. Por isso, às vezes penso que é importante dar uma mensagem positiva.

Qual?
Acredito que a gente vai responder e que aquela curva que tenho ali não vai ocorrer. É a minha esperança.

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