A esperança que sopra da América
Não é tempo de voltar para o sofá para ver os Trump deste mundo, como se fosse apenas um espetáculo. A mais nefasta das metáforas é que a extrema-direita é um balão que se vai esvaziar.
Joe Biden tomou posse, homenageando as 400 mil vítimas da tragédia que se abateu sobre a América e alertando que “a democracia é frágil” e tem de ser defendida da mentira, da desigualdade, da injustiça racial, do ódio.
O refluxo democrático começou a ser revertido, lá onde era mais importante que o fosse. Mas não é tempo de voltar para o sofá para ver os Trump deste mundo, como se fosse apenas um espetáculo. A mais nefasta das metáforas, que remonta aos anos de 1930, é que a extrema-direita é um balão que se vai esvaziar. Os seus líderes são bufões, mas não falhos de ideologia. Em A Conspiração contra a América, de Philip Roth, o candidato fascista é denunciado: “Como Hitler: todo o mundo acredita que ele não pensa o que diz”. Não era o que se dizia de Trump?
Biden anunciou as prioridades de uma nova política centrista humanista: a pandemia, a ecologia, a “justiça para todos” e a “reconstrução da classe média”. Para os primeiros dez dias de governo, Biden e Harris propõem regressar ao acordo de Paris, tudo fazer para reunir as crianças separadas das suas famílias emigrantes, propor uma lei para iniciar o processo de legalização de 11 milhões de emigrantes e um plano de relançamento da economia no valor de 1,9 biliões de dólares.
A tomada de posse de Biden e Harris é saudada pelos europeus, que encontrarão no governo americano um aliado para o renascimento da União Europeia e do multilateralismo, para a erradicação da pandemia e do vírus do racismo, e para vencer a tragédia social que vivemos. Para isso têm de superar o ceticismo que atravessa a opinião pública europeia sobre a capacidade dos americanos para reverterem a herança de Trump.
A democracia americana continua frágil: 72% dos eleitores republicanos ainda acreditam que Trump venceu as eleições. Os democratas enfrentam uma extrema-direita, com influência no Partido Republicano, da supremacia branca, do tristemente célebre America First, que sonha com o regresso à Presidência em 2025 do seu ídolo Trump.
Alimentam-se das notícias falsas, dos factos alternativos da propaganda da supremacia branca e do machismo, que as redes socais e as televisões exibem como espetáculo da tragédia democrática, conferindo-lhes credibilidade.
Para os democratas coloca-se o desafio de repor confiança ao discurso político. A prioridade será convencer os que continuam a negar a pandemia, as vacinas e a ciência, os que servem o obscurantismo e a morte. Em suma, o triunfo da razão.
As redes sociais devem ser consideradas como “empresas de comunicação”, sujeitas a regulamentação e fiscalização, com responsabilidade pelo que publicam. A decisão do Twitter de banir Trump deve servir de estímulo para a justiça ser muito mais severa para com o discurso de ódio e os incentivos à violência.
Para o discurso político democrático se tornar audível, é preciso vencer a desconfiança de muitos para com as palavras das elites, a quem responsabilizam pelas suas angústias e misérias.
Para tal, é necessário repor os princípios do “governo do povo, pelo povo, para o povo”, ou seja, de que os governantes estão ao serviço dos interesses dos cidadãos e não dos grupos económicos que financiam as suas campanhas. Este é o objetivo que será mais difícil de vermos cumprido.
Biden propõe-se ser “o Presidente de todos os americanos”, na pluralidade das opções políticas e na sua diversidade étnica, e realizar o sonho de Martin Luther King. Para ser bem-sucedido terá de continuar a ouvir a sociedade civil americana, cuja mobilização, da marcha das mulheres ao Black Lives Matter, o levou à presidência e permitiu a Kamala Harris, mulher e afro-americana, ser vice-presidente. Não tinham razão os que consideravam que o Partido Democrático não voltaria ao poder se continuasse a ser o partido defensor dos direitos das mulheres e das minorias. Ao fazer a sua defesa, está a defender os valores da nossa humanidade comum.
Perante a magnitude dos desafios, a Presidência Biden/Harris, se bem-sucedida, no que acredito, será uma das mais marcantes da história americana.
É altura para voltarmos a ouvir as vozes que nos vêm da América, pois, como outrora, The answer is blowin’ in the wind.