O que é preocupante nas variantes identificadas no Brasil e na África do Sul?

Certas mutações na proteína da espícula, responsável pela entrada do SARS-CoV-2 nas células humanas, estão entre as maiores preocupações quanto às novas variantes do coronavírus.

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Modelo do SARS-Cov-2 a três dimensões Visual Science

É normal existirem novas versões do coronavírus SARS-Cov-2. Já circula por todo o mundo e infectou mais de 92 milhões de pessoas. Mas estão a surgir novas variantes deste vírus que tem preocupado a comunidade científica, como aquelas que foram identificadas no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil, designadas como “variantes preocupantes”. Até agora, há em Portugal pelo menos 72 casos associados à variante encontrada no Reino Unido. Mas, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, ainda não foram detectadas as da África do Sul e do Brasil.

Todos os vírus sofrem alterações: essas mudanças fazem parte da sua evolução natural. “As mutações genéticas acontecem à medida que o vírus faz novas cópias de si mesmo para se espalhar e prosperar”, assinala ao PÚBLICO Marta Giovanetti, virologista italiana do laboratório de referência de flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A maioria das mutações é irrelevante e algumas podem até ser prejudiciais à sobrevivência do vírus, mas outras podem torná-lo mais infeccioso ou ser ameaçadoras para o hospedeiro. A virologista Maria João Amorim completa que o SARS-CoV2 tem uma capacidade de mutação menor do que o vírus da gripe A e do VIH, mas que também está constantemente a mutar.

Marta Giovanetti ressalva que já foram recentemente identificadas em circulação milhares de variantes do SARS-CoV-2, mas nota: “As preocupações dos especialistas concentram-se num pequeno número delas.” Afinal, podem ter certas mutações que que alterem o seu padrão de infecção, o que se poderá traduzir em diferentes impactos, nota Maria João Amorim, investigadora no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. Esses impactos podem estar relacionados com uma maior virulência, transmissibilidade ou alteração da capacidade de os anticorpos reconhecerem o vírus e assim nos protegerem da infecção natural ou da vacinação. “Até há bem pouco tempo, as variantes encontradas e estudadas em grande detalhe não demonstraram alterar estes padrões”, indica. Contudo, acrescenta que apareceram agora variantes que estão a causar preocupação na comunidade científica: foram as identificadas no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil.

501Y.V2: em mais de dez países

Inicialmente identificada no Reino Unido, a B.1.1.7 já foi reportada em mais de 50 países. Embora se tenha vindo a sugerir que não causa uma doença mais grave, tem-se constatado que é mais transmissível do que outras variantes em circulação, o que pode aumentar as hospitalizações e a mortalidade. Alguns estudos indicaram que esta variante é transmitida de forma mais rápida na população, sendo cerca de 50 a 56% mais transmissível do que outras variantes em circulação.

Uma outra em destaque tem sido a 501Y.V2 (ou linhagem B.1.351). Marta Giovanetti tem assinado artigos sobre essa variante e indica-nos que, em Outubro de 2020, a Rede de Vigilância Genómica na África do Sul (liderada pelo brasileiro Tulio de Oliveira) a tinha detectado. Esta variante foi inicialmente detectada no município de Nelson Mandela Bay, ao longo da costa Leste da África do Sul. Depois, espalhou-se rapidamente para outros distritos das províncias de Cabo Oriental, Cabo Ocidental e de KwaZulu-Natal.

“Tornou-se a linhagem dominante nas províncias do Cabo Oriental e do Cabo Ocidental em semanas”, informa a virologista italiana. Até esta sexta-feira, além da África do Sul, já pelo menos 12 outros países tinham relatado a sua presença: Reino Unido, Botswana, Austrália, Alemanha, Irlanda, Suíça, França, Finlândia, Países Baixos, Coreia do Sul, Noruega e Suécia. A 18 de Dezembro, as autoridades da África do Sul anunciaram que estava em rápida disseminação em três províncias no país.

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Em Pretoria, na África do Sul, onde foi detectada uma nova variante do SARS-CoV-2 Siphiwe Sibeko/Reuters

A 501Y.V2 tem oito mutações definidoras da linhagem na proteína da espícula, que é responsável pela entrada do SARS-CoV-2 nas células humanas, incluindo ao nível da ligação com o receptor das células e que podem “ter um importante significado funcional”, realça a virologista. Uma das mutações que pode ser preocupante é a E484K, que pode estar ligada ao aumento da infecciosidade, pois parece aumentar a ligação entre a proteína da espícula do vírus e o receptor do hospedeiro. Suspeita-se ainda que a E484K possa contribuir para que o vírus escape às respostas imunitárias de algumas pessoas.

“Acreditamos, e todas as provas apontam nessa direcção, que esta variante é mais transmissível”, afirmou ainda em Dezembro Tulio de Oliveira, director da Plataforma de Investigação em Sequenciação e Inovação da Universidade do KwaZulu-Natal (na África do Sul), à agência AFP. “Nunca vimos uma única linhagem dominar assim” ou “espalhar-se de forma tão rápida”, sublinhou.

P.1: do Amazonas ao Japão

Esta semana, as autoridades sanitárias do Japão anunciaram que foi detectada uma nova variante do SARS-CoV-2 em passageiros provenientes do Brasil. Veio depois a saber-se que tinha tido origem no estado do Amazonas, no Norte do Brasil. O que se sabe já sobre esta nova variante?

Chama-se P.1 e é uma nova linhagem descendente da B.1.1.28, que está presente um pouco por todo o Brasil. De acordo com os últimos dados do site SARS-CoV-2 lineages, que reúne a informação sobre diferentes linhagens através de dados da base de dados Gisaid, foram sequenciados 743 genomas da B.1.1.28 de amostras desde Março até Dezembro. Essa variante já foi detectada em pelo menos 19 países, incluindo Portugal. Mas é no Brasil que ela mais circula: 89% dos 743 genomas pertencem ao Brasil e apenas 1% a Portugal. É também a que está mais presente no Amazonas, estando em 47% das amostras recolhidas entre Abril e Novembro, segundo Felipe Naveca, investigador do Instituto Leônidas e Maria Deane, uma unidade da Fundação Oswaldo Cruz, em Manaus, no Amazonas.

Mas concentremo-nos na P.1. Ao todo, o Ministério da Saúde japonês relatou a presença desta variante em quatro viajantes que regressavam do estado do Amazonas. Para compreender melhor a variante, uma equipa coordenada por Felipe Naveca analisou a diversidade genética de 148 genomas do SARS-CoV-2 a circular no Amazonas entre Abril e Novembro de 2020 – 69 eram da linhagem B.1.1.28. Numa nota técnica agora publicada confirmou-se a origem da nova variante no Amazonas. “O estudo sugere que as cepas, detectadas em viajantes japoneses que tinham passado pela região amazónica, evoluíram de uma linhagem viral no Brasil, que circula no Amazonas”, lê-se num comunicado da Fundação Oswaldo Cruz. Há ainda a variante P.2 que também surgiu da evolução da B.1.1.28 e, além do Brasil, já chegou ao Reino Unido, aos Estados Unidos, ao Canadá e à Argentina.

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Em Manaus, no Brasil, onde já se identificou uma nova variante do coronavírus Bruno Kelly/Reuters

Quanto à P.1, Felipe Naveca refere que, além dos casos anunciados pelo Japão, foi detectado um caso de reinfecção desta variante e que se acabar “o sequenciamento de outros [casos] de Dezembro de 2020 que podem ser [desta variante]”. “Esse é o primeiro caso de reinfecção comprovado no Norte do país e pela variante nova, a mesma que foi achada no Japão. Precisamos estar alertas.”

O investigador diz que esta variante tem “uma grande acumulação de mutações”, em especial na proteína da espícula (contabilizaram-se aí já dez alterações genéticas). A P.1 tem algumas mutações já detectadas nas variantes identificadas na África do Sul e no Reino Unido, como a mutação N501Y, que aumentará a força da ligação entre a proteína da espícula e o receptor das células. Tem também as mutações L18F, K417N, E484K, que foram detectadas na da África do Sul.

“Se essas mutações conferirem alguma vantagem selectiva para a transmissibilidade viral, devemos esperar um aumento da frequência dessas linhagens virais no Brasil e no mundo nos próximos meses”, considera no comunicado Felipe Naveca. “Nenhum resultado indica mais virulenta, mas como ela possui mutações que já foram associadas à maior transmissibilidade esse risco é real”, acrescentou ao PÚBLICO. Para controlar esta variante, o cientista considera que as medidas aplicadas ao vírus original funcionam: uso de máscara, lavagem de mãos e distanciamento social.

Também num outro artigo sobre esta variante, que tem como dois dos autores o português Nuno Faria e a brasileira Ester Sabino, se revela que a P.1 foi detectada em circulação em Manaus (onde se tem assistido a um recorde do número de casos de covid-19) e assinala-se que “contém uma constelação única de mutações definidoras da linhagem, incluindo muitas mutações de importância biológica já conhecida”.

Neste artigo, refere-se que foi identificada em 13 de 31 amostras do vírus (42%) entre 15 e 23 de Dezembro, mas que estava ausente em 26 amostras de genomas de vigilância disponíveis publicamente e recolhidas entre Março e Novembro de 2020 em Manaus. “Estes resultados indicam a transmissão local e o possível aumento recente da sua frequência da nova linhagem da região amazónica”, lê-se. “O surgimento de variantes com múltiplas mutações partilhadas na espícula aumenta a preocupação sobre a evolução convergente para um novo fenótipo, potencialmente associado a um maior aumento na transmissibilidade ou na propensão para a reinfecção dos indivíduos.”

Por causa da variante P.1, o Reino Unido proibiu os voos provenientes de Portugal, do Brasil e de muitos outros países da América do Sul. Portugal foi incluído na lista por causa do elevado número de viagens com o Brasil. Apesar de tudo, o ministro britânico dos Transportes, Grant Shapps, disse à BBC que os cientistas pensam que as vacinas funcionam com esta variante: “Vimos que pode haver um problema, não tanto que a vacina não funcione, porque os cientistas pensam que funcionará, mas apenas pelo facto de [esta variante] ser mais propagável.”

O virologista Pedro Simas afirmou à agência Lusa que, em princípio, esta variante “não é mais perigosa em termos de capacidade de produção da doença”, sendo necessário “aferir se ela se dissemina melhor”. “Não é preciso entrar em pânico, não há aqui nada de muito novo, mas eu percebo que, nos países que estão com problemas [com a pandemia], faça parte dos confinamentos limitar também as entradas e saídas”, disse o investigador do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, acrescentando que é bom ter alguma cautela e tempo para estudar esta variante.

Que medidas devem ser tomadas

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem vindo a alertar que surgirão mais variantes do SARS-CoV-2 e que é preciso acelerar o processo de descoberta e sequenciação genética para as acompanhar. O comité de emergência da OMS reuniu-se esta quinta-feira, antes do previsto, para discutir as variantes do coronavírus. Como resultado, pediu que houvesse uma expansão global da sequenciação genética e da partilha de dados. Também apelou à OMS para que desenvolva um sistema padronizado para nomear as variantes e se evitem assim indicadores geográficos, algo que já foi iniciado.

Marta Giovanetti assinala que a rápida identificação destas variantes serve de alerta e reforça a necessidade das medidas de controlo da pandemia, como o distanciamento social e a aceleração do processo de vacinação. Tudo isto é necessário, de acordo com a virologista italiana, para “reduzir a possibilidade de circulação destas e de possíveis futuras linhagens que podem vir a tornar-se mais transmissíveis, inclusive para indivíduos que já tiveram a doença”.

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Cientistas avisam que é preciso analisar a eficácia das vacinas para as novas variantes Moderna Inc/Reuters

A cientista diz que as mutações detectadas nas variantes, sobretudo na proteína da espícula, poderão afectar a função do vírus e parece que têm crescido em frequência relativa desde a sua descoberta. “As recentes análises da transmissão espacial do SARS-CoV-2 destacam o potencial para a disseminação rápida do vírus por meio de viagens nacionais e internacionais.” Como tal, é necessária a vigilância contínua das linhagens.

Maria João Amorim comenta que, ao se confirmarem os resultados de que as variantes com a mutação N501Y têm um aumento na transmissão, significa que o vírus tem mais capacidade de disseminar na população. “O perigo [da existência de variantes mais transmissíveis] é o aumento do número de pessoas infectadas a ponto de originar o colapso dos sistemas de saúde, bem como o aumento da incapacidade dos países no controlo da infecção” alerta, referindo que é necessário averiguar se o aumento na transmissão terá origem na maior mobilidade de pessoas em determinadas regiões de Inglaterra em oposição a outras.

Quanto às variantes que podem alterar a capacidade de os anticorpos neutralizarem a infecção, há dois problemas: se há a probabilidade de reinfecção e se a vacina está adaptada a essas variantes. Mesmo assim, a virologista lembra que a resposta imunitária vai muito para além dos anticorpos neutralizantes. “Uma redução de anticorpos pode aumentar a reinfecção e diminuir o controlo da pandemia, mas pode continuar a prevenir a doença grave”, reflecte. “O problema poderia estar resolvido se se desenvolvessem novas vacinas, mas esse processo levaria tempo e estamos numa luta contra o tempo. É importante avaliar estas questões em detalhe.”

Sobre as medidas para controlar as variantes, a virologista enumera algumas a nível científico. Primeiro, uma medida essencial seria a avaliação exaustiva do impacto das mutações a nível epidemiológico e a da doença. Depois, deveria aumentar-se a monitorização dos vírus a circular na população e verificar se há um aumento da prevalência destas variantes. Por fim, aconselha avaliações pormenorizadas da eficácia das vacinas e da prevalência de reinfecções em pessoas já vacinadas e não vacinadas em sítios onde as variantes estão a circular em comparação com locais onde essas linhagens não circulam.

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