Conversa de cabeleireiro

Descobrimos, da primeira vez que ficámos fechados em casa, como os cabeleireiros e barbeiros são essenciais na vida dos portugueses.

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"É um cabeleireiro de bairro e imagino a despesa acrescida em luvas, máscaras, batas plásticas… E o impacto ambiental de tanto desperdício" Tiago Lopes

Quarta-feira, ao final da tarde, o primeiro-ministro anuncia o novo confinamento. Ainda não são nove da noite e o telefone toca. “Bárbara, é a Rita, do cabeleireiro, desculpe ligar a esta hora, mas tinha uma marcação para a semana e não vai dar... Amanhã o Costa ainda nos deixa trabalhar, quer vir ao início da tarde?”

Estou em teletrabalho, posso gerir a minha hora de almoço; se me atrasar, trabalho até mais tarde — paciência.

Continuo em silêncio do lado de cá da linha, recordando que no confinamento anterior as raízes do meu cabelo foram ficando brancas, fui pintando em casa e o resultado não ficou famoso. “Sim, pode contar comigo. E dá para fazer os pés?”, respondo, depois de acrescentar à lista mental a quantidade de leitores que liam os textos que tinham “cabeleireiro” ou “barbeiro” no título. Descobrimos, da primeira vez que ficámos fechados em casa, como estas são profissões essenciais na vida dos portugueses.

Quinta-feira, ao início da tarde, chego cinco minutos adiantada e a Rita não me deixa entrar. O cabeleireiro está na sua ocupação máxima, quatro pessoas: Rita, a cabeleireira, Inês, a manicura, e duas clientes. Não era assim há um ano. Naquele espaço pequeno podíamos estar o dobro das pessoas. Então, além de Inês e Rita, trabalhava também João. Desde que voltaram a abrir portas e com as novas regras, João e Rita revezam-se, semana sim, semana não, cada um gere a sua carteira de clientes.

Depois de uma das clientes sair, Inês limpa o espaço todo, de papel numa mão, bisnaga de desinfectante na outra e máscara posta. À entrada oferece-me álcool-gel. Entretanto, Rita substitui a máscara e as luvas. Fá-lo para cada uma das clientes que entra. Oferece-me uma máscara cirúrgica para substituir a minha, que é social, de maneira a não estragá-la com a tinta do cabelo. É um cabeleireiro de bairro e imagino a despesa acrescida, inexistente anteriormente, em luvas, máscaras, batas plásticas… E o impacto ambiental de tanto desperdício.

Sento-me e ouço as novidades do bairro e da concorrência. Por detrás da máscara, Rita conta que nos últimos meses vários cabeleireiros foram multados por não respeitarem as regras. Ora têm gente a mais, ora as profissionais não seguem as regras da Direcção-Geral da Saúde, ora estão abertos até desoras para conseguirem atender todos os clientes, enumera. Outros fecharam e as cabeleireiras vão a casa das clientes ou aquelas vão a casa delas. “Não pagam rendas nem impostos, mas expõem mais as clientes ao vírus, não acha? Em casa ninguém as controla, é pior...”

Sim, é difícil continuar a pagar contas com menos clientes, mas antes isso do que pagar uma multa de milhares de euros, continua. “A gente já trabalha só para pagar impostos, só falta trabalharmos para as multas!”, refila Rita, enquanto me cobre as raízes de tinta. “Além disso, para quê arriscar ficar doente?”, pergunta Inês, enquanto passa acetona no verniz antigo, lembrando que em casa tem dois filhos, um ainda estuda, a mãe e a avó, já com 90 anos.

As duas estão descrentes que este confinamento vá resultar. “Da primeira ainda nos levaram ao engano e ficámos todos em casa, mas, desta vez, as pessoas estão muito confiantes”, atira Rita. “Ou já estão cansadas...”, digo. “Ou são estúpidas, que isto não está para andarmos a correr para os hospitais...”, contrapõe Inês. “Sabia que morreu o sogro do João? É terrível, foi para o hospital, morreu, entregaram-no num caixão selado, não houve tempo para despedidas, para nada... Ainda há muita gente que não percebeu que isto é mesmo grave”, reforça Rita.

Cai-me uma mensagem no telefone, é da Worten a dizer que as lojas continuam abertas. A seguir é a Ikea, a informar que as áreas dos produtos alimentares estarão em funcionamento. Partilho com as duas. “De que adianta fecharem-nos as portas e manterem outras abertas? Ainda não percebi por que têm de ir famílias inteiras ao supermercado. Isso é que o Costa devia proibir! Dizer: ‘Só vai um por agregado familiar.’ E pronto. É que as pessoas vão para lá passear!”, resmunga Inês, debruçada sobre os meus pés, interrompendo para me dizer que vai cortar as unhas rentes, que assim duram mais tempo.

E as escolas? A minha filha já veio para casa duas vezes desde que as aulas começaram por causa de colegas infectados”, continua. “E as igrejas? Faz algum sentido, as igrejas cheias de velhotes?”, refuta Rita. “E os espectáculos? Não percebo… Fui uma vez ao teatro e senti-me muito segura, como em casa, como aqui... A Bárbara não se sente segura aqui?”, pergunta-me Inês. Sinto.

“Temos tido muito cuidado até porque a maior parte das nossas clientes são de risco por causa da idade”, justifica Rita. Fica um silêncio constrangedor. “Não estamos a falar de si”, exclamam as duas, quase ao mesmo tempo, dando uma gargalhada. É a primeira vez que as ouço rir.

Depois de pagar, Rita oferece-me álcool-gel para desinfectar as mãos porque mexemos em dinheiro. Despedimo-nos, não vale a pena fazer nova marcação. “Até para o mês que vem, se Deus quiser”, desejo-lhes. “Deus não, o Costa! Bom confinamento!”, despede-se Inês, já com o papel numa mão, o desinfectante na outra e um sorriso por detrás da máscara.

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