CNPD impede acesso de estudantes de Medicina aos dados clínicos dos doentes
A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) assegura que apenas os profissionais inscritos na Ordem dos Médicos podem aceder ao software que agrega os dados clínicos dos doentes internados e em consulta. O parecer, pedido pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, põe um travão nos projectos em curso em vários hospitais universitários. Os representantes das escolas médicas vão reunir para consensualizar uma resposta.
A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) não podia ser mais taxativa: os estudantes de Medicina não podem aceder legalmente aos dados clínicos dos doentes. Num parecer emitido a pedido da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no âmbito de um protocolo a estabelecer com o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, mais concretamente com o Hospital Santa Maria, e que visava a criação de um perfil específico para que os estudantes pudessem aceder no âmbito da sua formação académica ao software SClínico, que agrega os registos clínicos dos doentes, a CNPD conclui que tal acesso carece de fundamentação legal. E, num parecer datado de 30 de Dezembro, deixa claro que tal acesso só pode ser feito por licenciados em Medicina inscritos na Ordem dos Médicos.
Esta decisão, com repercussões extensíveis a todos os hospitais universitários do país, deixou estupefacto o coordenador do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), Henrique Cyrne de Carvalho, que diz tratar-se de um parecer “cego e desconhecedor da realidade” da formação médica em Portugal. “É com muita tristeza que acolhemos este parecer, que significa mais um atraso num processo que está em evolução há mais de três anos e que visava precisamente regular o acesso a estes dados, que hoje se faz de forma híbrida, e salvaguardar e proteger os dados pessoais dos doentes, mediante a criação de um perfil de acesso ao sistema electrónico específico para os estudantes e que os responsabiliza”, reagiu em declarações ao PÚBLICO.
“Os estudantes devem poder aceder aos dados clínicos dos doentes para poderem estar aptos a exercer no fim da sua formação”, concorda Catarina Dourado, que preside à Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), lembrando que o referido protocolo, tal como outros entretanto firmados noutros hospitais universitários, previa a criação de um perfil de acesso ao sistema electrónico “exclusivo para os estudantes”, isto é, com poderes restritos e de mera visualização dos dados.
Reconhecendo que uma alteração legal de 2019 vincula os estudantes de Medicina ao dever de sigilo quando acedam a dados pessoais de saúde, a CNPD entende, porém, que tal dever não pode funcionar como norma de legitimação do acesso electrónico a esses dados. De resto, “o interesse dos estudantes de Medicina em conhecer dados pessoais de saúde no contexto da sua aprendizagem não basta para legitimar o acesso a dados que integram a categoria de dados pessoais especialmente protegidos”, enfatiza ainda a entidade que controla o tratamento de dados pessoais, para a qual o acesso ao historial clínico dos doentes por parte dos estudantes só pode ser feito mediante consentimento.
Ao PÚBLICO, a porta-voz da CNPD, Clara Guerra, lembra que o acesso automático tais dados só tem cobertura legal quando visa a prestação de cuidados de saúde. E estes só podem ser assegurados por profissionais de saúde inscritos na Ordem dos Médicos. “Não sendo profissionais de saúde, os estudantes de Medicina não podem nunca ter um perfil de acesso autónomo a uma base de dados desta natureza: eles não fazem diagnósticos nem definem terapêuticas”, declarou, lembrando que, no âmbito da sua formação, “os estudantes andam sempre acompanhados por um médico e que o dever de sigilo que os vincula destina-se a proteger a informação a que acedem quando contactam com os doentes”.
O coordenador do CEMP discorda. “Andamos há anos a trabalhar no enquadramento legal deste acesso e foi por isso que avançámos com o juramento de confidencialidade que os alunos assinam. Estávamos agora na fase de criação de uma password de acesso ao software específica para estudantes e de utilização limitada, isto é, os estudantes poderiam visualizar a informação dos doentes internados ou em consulta mas sem qualquer capacidade de intervenção, para não corrermos o risco, que seria sério e gravíssimo, de alguém poder propor alterações terapêuticas sem capacidade para o fazer”, contextualiza Henrique Cyrne de Carvalho, explicando que cada estudante teria um código intransmissível “que o responsabilizaria” e que cada acesso ficaria identificado, com data e hora.
Projectos ficam parados
No Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) foi assinado, em Outubro de 2019, um “compromisso institucional” que já prevê o acesso dos estudantes de Medicina a registos clínicos, numa iniciativa subscrita pela Ordem dos Médicos e pela SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde), que desenvolveu o SClínico, o software que agrega os dados dos doentes. O objectivo então enunciado era regular o acesso a registos clínicos por parte dos estudantes dos anos mais avançados do curso, vinculando-os ao referido dever de sigilo. O mesmo aconteceu, de resto, e em Dezembro do mesmo ano, na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior (UBI).
Questionados pelo PÚBLICO, os responsáveis do CHUSJ negam, porém, terem incorrido nalguma ilegalidade, na medida em que nenhum estudante pôde ainda aceder a dados clínicos de “doentes reais”. “Não existem acessos de estudantes ao SClínico no CHUSJ”, asseguram, explicando que tal não ocorreu por faltar na ferramenta criada pela SPMS uma “peça” para gestão do consentimento do utente. De resto, nem a possibilidade de acesso por parte dos estudantes a um SClínico “formativo”, com dados de doentes fictícios, avançou ainda, segundo os responsáveis daquele centro hospitalar universitário.
Face aos entraves levantados pela CNPD, os responsáveis pelas escolas médicas vão reunir nos próximos dias para tentarem concertar “uma posição conjunta”, conforme adianta Henrique Cyrne de Carvalho, também presidente do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), para quem a proposta que estava em cima da mesa é “mais transparente e fiável” do que o que se passa actualmente nos hospitais universitários: “Quando os processos estavam em papel, os estudantes podiam ir à sala de enfermagem ou dos médicos e consultar os ficheiros de cada doente. Quando os processos passaram a ser electrónicos, o acesso passou a fazer-se com recurso à password do assistente ou do docente, com a devida autorização da comissão de ética, porque os estudantes fazem cada vez mais investigação clínica e têm a sua tese de mestrado para apresentar no fim, para a conclusão do mestrado integrado de Medicina”, descreve, dizendo-se seguro de que “o acesso com um perfil específico de estudante, além de mais transparente e seguro, serviria já como treino da responsabilidade que irão assumir uma vez formados”.