A autocompaixão pode prevenir (e reduzir) o burnout em estudantes de Medicina
Investigação de uma equipa da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra sugere que “competências emocionais” e “práticas ligadas ao mindfulness e à autocompaixão” podem ajudar no combate ao burnout. Estudo apela à participação de todos os estudantes do país de Medicina e Medicina Dentária, entre os quais o burnout é comum.
Para Cláudio Ferreira, de 23 anos, a experiência com o burnout começou no primeiro ano de Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). “Estava perdido com Anatomia”, confessa, uma unidade curricular que só poderia ser feita por exame final oral. “Correu muito mal, não consegui fazer nesse ano e, a partir daí, foi uma bola de neve”, conta. Só que Cláudio não é caso único. Apesar de, neste momento, não considerar estar a passar por burnout, Beatriz Silva, estudante de 21 anos de Medicina Dentária da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Coimbra, diz já se ter sentido “mal” durante o percurso escolar e agora, no ensino superior, sente que é “um bocado complicado” lidar com o stress na época de exames.
Uma equipa da FMUC está a desenvolver um projecto de investigação que pretende reduzir o burnout através da autocompaixão nos estudantes de Medicina e Medicina Dentária de todo o país, do primeiro ao quinto ano. E Cláudio e Beatriz querem participar na investigação.
O burnout é uma perturbação psicológica, conhecida como esgotamento profissional, comum nos alunos de Medicina e Medicina Dentária, de acordo com uma investigação da FMUC. “É difícil lidar com o ambiente típico das faculdades de Medicina: exigente, competitivo, com muitas avaliações e uma carga elevada de estudo”, diz Ana Telma Pereira, investigadora responsável pela equipa do estudo. Qualquer aluno destes cursos no país pode participar no estudo, bastando para isso enviar email para comburnout.fmuc@gmail.com até à primeira semana de Dezembro.
Para Ana Telma Pereira, os níveis elevados de ansiedade, stress e depressão dos alunos destes cursos podem estar associados a traços de personalidade que os caracterizam, como o neuroticismo e o perfeccionismo, “que podem ter facetas positivas, mas também negativas, como o medo de falhar”. Cláudio, agora no quinto ano do curso, e Beatriz, no quarto, estão conscientes disso. “Isto tem tudo a ver com o perfeccionismo. Eu tenho muito aquela ideia de que é para fazer perfeito e bem, ou então não vale a pena sequer fazer...”, assume o estudante de Medicina. “Sinto que no meu curso quem sofre mais são os perfeccionistas. Temos de ter bastante detalhe no que fazemos”, refere Beatriz.
Cláudio recorda que os sintomas de “autoculpa” surgiram mal soube que ia entrar na universidade que tinha escolhido para quarta opção, a única que o obrigava a sair de casa. “O meu primeiro ano começou logo mal aí. Nunca fui aquele miúdo que chega àquela idade e quer sair de casa dos pais e ir para outra cidade. Isso tudo misturado começou a criar em mim a sensação de ‘eu não sou capaz...’, ‘isto não vai correr bem...’, e foi assim do primeiro até ao terceiro ano.”
O estudo, financiado em 30 mil euros pelo programa Academias do Conhecimento, da Fundação Calouste Gulbenkian, é constituído por várias fases ao longo de cerca de um ano. Na primeira, a equipa vai identificar os estudantes em risco através de questionários online. Na segunda, implementar um programa de intervenção online em grupos de oito a dez alunos cada um e dois facilitadores — responsáveis por moderar as intervenções —, com uma sessão por semana, durante oito semanas, de 1h30 a 2h. O objectivo é “promover as competências emocionais e treinar práticas ligadas ao mindfulness e à autocompaixão, como meditação e partilha de experiências”, diz a investigadora, acrescentando que há estudos que mostram que o perfeccionismo é factor de risco para o burnout — e que a autocompaixão é um antídoto. A terceira fase é constituída pela avaliação dos resultados. A equipa do estudo é composta por psicólogos e médicos internos de Psiquiatria. “Eles próprios, há poucos anos, passaram por este tipos e pressões e de dificuldades.”
Ainda são poucos os que procuram ajudam — e, quando o fazem, é em fases tardias
O burnout já é considerado uma doença pela Organização Mundial de Saúde. Ana Telma Pereira refere que os que procuram ajuda são um “número ínfimo”, estimando-se que menos de um quinto dos alunos com burnout o façam. E quais podem ser as razões? “Há um estigma associado por causa da vergonha. Mesmo que compreendam que estão em burnout, deixam andar durante bastante tempo. Pode ser visto como uma falha, uma fraqueza, o que não é”, garante.
“Não cheguei a falar no primeiro ano porque as coisas são encaradas como normais”, lembra Cláudio. “Quando comecei a falar com amigos e colegas mais próximos é que percebi que existe bastante disto, mas ninguém fala e ninguém sabe. Em alguns casos, apercebo-me de que, se não tivesse tido aquela conversa com aquela pessoa, nunca saberia que ela estaria a passar por aquilo.” O estudante de Medicina considera que o facto de ter tido apoio dos amigos, de ter sido sempre “muito transparente” com os pais e de estes nunca o pressionarem para atingir os melhores resultados possíveis foi fundamental para lidar com a situação de burnout.
Já Beatriz Silva diz que os colegas do curso “falam abertamente” sobre este assunto, sobretudo na época de exames. A pior fase, para a estudante de Medicina Dentária, foi no ensino secundário; agora já consegue “controlar” os sintomas. Nunca tomou qualquer medicação ligada à ansiedade. “Procurei psicólogos e tentei melhorar com técnicas que me ensinaram”, diz. Ao contrário de Beatriz, Cláudio procurou ajuda no terceiro ano do curso: “Marquei uma consulta no psiquiatra e comecei a tomar medicação. Antes disso, acordava com dores de cabeça e com a sensação de que não tinha dormido o suficiente”, garante, acrescentando que, neste momento, se sente “melhor” — e só toma essa medicação em SOS.
“Se conseguirmos ser gentis connosco, poderemos diminuir a autocrítica, o perfeccionismo, o medo de falhar”, até porque “sem empatia é impossível prestar cuidados médicos de qualidade”, refere a investigadora. “Por muito que se avance na tecnologia médica, não vai servir de nada se não houver valores altruístas na Medicina. Estamos a falar de uma área que é eminentemente humana”, prossegue, considerando essencial a procura de ajuda o mais cedo possível. “O burnout é grave porque tende a aumentar ao longo da carreira médica. O pico é atingido no internato — em que os alunos estão em contacto directo com os pacientes —, daí ser importante agirmos nas idades e nas fases de formação anterior a essa, para depois os alunos – futuros profissionais – terem melhores competências para lidar com os pontos de stress crescentes característicos desse período.”
A pandemia pode levar ao aumento de casos de burnout nos estudantes
Sabe-se que, com a covid-19, mais de metade dos profissionais de saúde mostram sinais de burnout e stress. A investigadora aponta que a pandemia pode conduzir ao aumento de burnout nos estudantes de todos os cursos, mais particularmente nos de Medicina e Medicina Dentária. “Não aprendemos tanto...”, diz Beatriz, que está na fase clínica, de contacto com pacientes em Medicina Dentária. “Há quem esteja mais ansioso porque nem tivemos uma [aula] teórica presencial, que também é importante, para visualizarmos melhor os casos.” Cláudio diz que esta fase é “prejudicial” para os estudantes. “São perdas importantes na nossa formação e vamos ter de correr por nós e colmatar isso, eventualmente”, acrescentando que a parte prática é crucial, para não saberem apenas “casos clínicos de livro”.
A investigadora sublinha que “há mais incerteza” relativamente à aprendizagem, uma vez que os alunos “têm noção de que a formação não está a funcionar idealmente”. Além disso, “não há convivência” como dantes, “que é crucial porque contribui como um escape para lidar com estas situações”. Falar do burnout “ainda é mais importante e pertinente” nesta fase pandémica, conclui.
Texto editado por Ana Maria Henriques