Júri nacional de procurador europeu decidiu valor dos critérios depois de saber quem eram os candidatos
Director-geral da Política de Justiça demite-se na sequência de envio de carta com erros, mas deixa a ministra numa posição difícil, ao garantir que o seu gabinete teve conhecimento do “conteúdo integral” da informação. Van Dunem garantira que só conhecera o documento pela comunicação social.
O júri constituído dentro do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) para avaliar as candidaturas ao cargo de procurador europeu só definiu o valor de cada um dos critérios de avaliação depois de saber quem eram os candidatos. A situação suscitou reclamações por parte de dois dos cinco procuradores que se apresentaram a concurso, mas foi indeferida. Apesar disso, acabou por suscitar a abstenção por parte de dois dos 16 membros daquele conselho, que validou, por maioria, a lista com a classificação dos três melhores candidatos.
Quem se absteve foi o antigo director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Amadeu Guerra, e um conselheiro eleito pela Assembleia da República e indicado pelo PSD, Barradas Leitão. É que determinar os valores dos critérios de avaliação só depois de conhecer os candidatos pode permitir manipular a escolha. Amadeu Guerra, que na altura era procurador-geral distrital de Lisboa, fez questão de deixar uma declaração de voto escrita, que, contudo, ao contrário do que é habitual, não foi divulgada no Boletim Informativo do CSMP.
Naquele documento apenas se refere que essa parte do plenário foi presidida pela procuradora-geral, Lucília Gago, a 28 de Fevereiro de 2019, já fora do prazo definido pelo Ministério da Justiça para o fim do procedimento de selecção, que deveria ter terminado a 15 desse mês. A classificação colocou o procurador José Guerra em primeiro lugar, o colega João Correia dos Santos em segundo e Ana Carla Almeida em terceiro.
Apesar de o procedimento de selecção ter passado relativamente despercebido à maioria dos membros do CSMP, a mudança de alguns dos membros do órgão veio a determinar uma oposição mais dura por parte de outros conselheiros. Em Setembro passado, quando o CSMP foi chamado a autorizar a comissão de serviço de José Guerra, já nomeado pelo Conselho da UE em Julho, o advogado Rui Silva Leal, eleito pelo Parlamento e indicado pelo PSD, fez questão de que ficasse escrita uma declaração de voto. “Lida a documentação de selecção de candidatos que correu termos junto do CSMP, pude concluir que os critérios valorativos de selecção dos candidatos foram fixados depois de conhecidos os candidatos e que a classificação atribuída a cada candidato não foi devidamente fundamentada”, afirmou Silva Leal. E conclui: “Não me parece que a globalidade do processo tenha sido devidamente transparente, fundamentada e imparcial.” A declaração foi subscrita na íntegra pelo procurador Carlos Teixeira, o responsável pela investigação do processo de corrupção Apito Dourado, actualmente procurador-coordenador.
Esta é uma das muitas peripécias deste polémico processo que levou esta segunda-feira à demissão do director-geral da Política de Justiça, Miguel Romão. O Ministério da Justiça informou numa nota que o dirigente, que se reuniu com a ministra, colocou o seu lugar à disposição, “decisão aceite por Francisca Van Dunem, tendo em conta os últimos acontecimentos”.
A Direcção-Geral de Política de Justiça (DGPJ) é o organismo responsável pelas relações internacionais do Ministério da Justiça e foi quem transmitiu, em Novembro de 2019, à Representação Permanente de Portugal na União Europeia (Reper), uma nota que contém vários erros sobre o currículo do procurador José Guerra. Entre os lapsos está o facto de José Guerra ser referido como “procurador-geral adjunto”, a categoria de topo da carreira dos magistrados do Ministério Público, quando está apenas no segundo nível dos três existentes (procurador da República).
Num outro comunicado, Miguel Romão assume a responsabilidade pelos erros da instituição que dirige, apesar de frisar que não teve intervenção directa no caso e refutar qualquer intenção de “deturpar intencionalmente a verdade”. Sublinha, no entanto, que o “conteúdo integral” do documento remetido à Reper “era do conhecimento do gabinete da senhora ministra da Justiça desde aquela data” e que aquela representação pedira “muita urgência no seu envio”.
“Nada, nem nas instruções da senhora Ministra da Justiça, nem no desempenho dos profissionais da DGPJ, foi feito no sentido de deturpar intencionalmente a verdade ou as qualificações de qualquer candidato, e o brio e capacidades dos profissionais da DGPJ não devem ser postos em causa ao serviço da simples exploração de um erro”, lê-se na nota daquela direcção-geral.
Em entrevista à RTP, no fim-de-semana, porém, a ministra tinha garantido que desconhecia a carta enviada pela Reper e que só tomou conhecimento dela quando foi noticiada pela RTP e SIC.
José Guerra foi nomeado em Julho do ano passado para o cargo de procurador europeu nacional na nova Procuradoria Europeia, um órgão independente da UE competente para investigar, acusar e sustentar a instrução e o julgamento contra criminosos que lesem os interesses financeiros da União (por exemplo, casos de fraude ou corrupção com prejuízos superiores a 10 milhões de euros). Guerra tomou posse em Setembro passado, apesar da polémica à volta da sua nomeação, relacionada, em parte, com o facto de não ter sido o preferido de um painel europeu de selecção, que deu um parecer no processo.
A ministra da Justiça tem insistido que a escolha de José Guerra não foi do Governo, mas do Conselho Superior do Ministério Público. Dos três candidatos que o Governo português apresentou para o lugar, o júri internacional escolheu Ana Carla Almeida, mas o executivo não aceitou esta escolha. Van Dunem alega que o Governo se limitou a seguir a escolha do Conselho Superior do Ministério Público, no entanto, a situação ganhou novas proporções quando foi revelado um documento, emitido há mais de um ano, que transmite à Reper os argumentos que deviam ser apresentados ao Conselho da UE para justificar por que Portugal não aceitava a escolha do júri internacional e insistia no nome de José Guerra. Vários não correspondiam à verdade.
Miguel Romão estava à frente do organismo responsável pelas estatísticas da Justiça, pelo planeamento do ministério e pelo acompanhamento dos processos legislativos desde Dezembro de 2018. Primeiro esteve em regime de substituição e há menos de um mês Van Dunem nomeou o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa director-geral da Política da Justiça, numa comissão de serviço por cinco anos, após um avaliação e proposta da Comissão de Recrutamento e Selecção para Administração Pública. Ao fim de pouco mais de três semanas, Miguel Romão demite-se.