A pose elegante, uma voz prodigiosa
António Victorino de Almeida, Maria João Pires, Carminho, Pedro Abrunhosa: quatro testemunhos num coro de lamentos à morte e elogios à vida e à carreira de Carlos do Carmo.
Uma voz única, um intérprete aberto às palavras dos poetas e atento às novas gerações, do fado como da música em geral; a pose elegante, nos palcos como na vida, o cidadão solidário e interveniente, o artista de grande dignidade, o cantor da cidade de Lisboa… São incontáveis os elogios que puderam ser ouvidos, e lidos, esta segunda-feira, após o desaparecimento de Carlos do Carmo, aos 81 anos, vítima de um aneurisma da aorta abdominal.
E António Victorino de Almeida realça, em declaração ao PÚBLICO, que esses elogios não surgem apenas pela circunstância da morte. “O Carlos já não está aqui, mas ele está sempre aqui”, diz o maestro, para quem o fadista era o seu melhor amigo, e vice-versa. “Faltam-nos as palavras para dizer quanta falta ele nos vai fazer”, insiste o músico e compositor, que escreveu para Carlos do Carmo perto de duas dezenas de fados e canções – 12 delas para o álbum que em 2012 o cantor gravou com Maria João Pires, um diálogo entre piano e voz, no qual Carlos do Carmo interpretou poemas de autores como José Saramago, Maria do Rosário Pedreira ou Nuno Júdice.
“Ele aliava inteligência e um talento incrível a uma enorme seriedade como pessoa: era um cidadão extraordinário, uma pessoa solidária”, diz Victorino de Almeida, enquanto Maria João Pires, na rede social Instagram, assegurava que ele ficará também na sua memória “como um artista verdadeiro, um homem de grande dignidade e de grande cultura”.
Na maior parte dos casos, fadistas, músicos, compositores, autores, manifestam grande dificuldade em dissociar as suas palavras da relação pessoal, e também profissional, que mantiveram com o intérprete de Por morrer uma andorinha. Mas António Victorino de Almeida, que com ele conviveu mais de meio século, não tem dúvidas em considerar Carlos do Carmo “outro génio absoluto da música, depois da Amália Rodrigues”, protagonizando “a segunda grande revolução que houve no fado”. “A Amália deu a conhecer o fado no estrangeiro; o Carlos do Carmo veio trazer-lhe uma nova dimensão, uma série de novas ideias, não ficando agarrado a nenhuma tradição”, diz o compositor, que, “se tivesse que escolher as dez maiores vozes, em qualquer género de música, a ópera, o lied, o fado, ele está sempre entre os primeiros, é uma voz prodigiosa”, assegura.
Carminho vê também em Carlos do Carmo “uma figura incontornável da cultura portuguesa”, e realça o seu contributo para sucessivas gerações da música, e não apenas no fado”.
“Ele andou por muitos géneros, era uma pessoa muito aventureira e generosa, arriscou muito e juntou-se sempre a muitos artistas, especialmente aos mais novos”, acrescenta a fadista também ao PÚBLICO, realçando o modo como Carlos do Carmo “desafiava outros compositores, e poetas que não estavam acostumados a escrever para ele e para o fado”.
Carminho foi uma dessas vozes das novas gerações cuja carreira se cruzou, e aproveitou da generosidade do intérprete de Um Homem na Cidade. “Cruzei-me e gravei discos com ele, que teve a generosidade de me convidar para cantar com ele várias vezes, e isso resultou sempre em momentos de grande aprendizagem”, acrescenta a intérprete de Maria.
Ao lado de Bob Dylan e Lou Reed
Conhecedor da precária saúde de Carlos do Carmo, Pedro Abrunhosa não foi surpreendido pelo seu desaparecimento. “Não foi uma morte inesperada”, diz o músico e compositor, desde que há meia dúzia de anos o acompanhou num internamento de urgência no Hospital de São João, no Porto, quando o fadista sofreu uma crise cardíaca grave no avião que o trazia de Paris.
“Ele tinha problemas de coração e passou vários momentos difíceis. Mas viveu-os sempre com uma grande dignidade, como quando decidiu despedir-se dos palcos” aos 80 anos, com os concertos nos Coliseus, nota Abrunhosa, realçando a sua “elegância física e de personalidade”.
Do ponto de vista musical, o intérprete de Silêncio coloca Carlos do Carmo na galeria dos grandes músicos internacionais, ao lado mesmo de um Bob Dylan ou um Lou Reed, revelando que os ouvia com o mesmo arrebatamento quando era ainda adolescente. “Um Homem na Cidade [1977] é um disco que sempre me emocionou, e que de algum modo está na origem do rock e pop português, que progride de uma certa pobreza literária para o rock mais poético na linha do Lou Reed”, diz Abrunhosa. E cita o Fado do Campo Grande – que nomeou já várias vezes como “a canção mais importante da música portuguesa dos últimos 50 anos” – como exemplo maior desse disco que compara “à urbanidade nova-iorquina do Lou Reed”, e onde vê “a mesma importância dos discos dos Velvet Underground”. “É um disco seminal da cultura pop, não já da cultura do fado”, nota.
Testemunho dessa admiração, Pedro Abrunhosa dedicou em 1994 a Carlos do Carmo o seu álbum de estreia, Viagens; no mesmo ano, o fadista foi vê-lo num concerto dos Bandemónio, em Faro. Foi o início de uma bela amizade pessoal, que passou também por vários momentos de parceria artística. Um dos mais relevantes aconteceria logo no ano a seguir, com Abrunhosa e escrever e a convidá-lo a interpretar a canção Manhã, para o disco Tempo, que sairia em 1996. “Foi a primeira música que ele interpretou fora do ambiente do fado e fado-canção”, recorda Abrunhosa, que depois escreveu novas canções para Carlos do Carmo, mas, a mais recente, o fadista já não conseguiu gravá-la para o disco E Ainda…, que sairá postumamente este ano. “Ele já não teve forças para a gravar; pediu-me desculpa. Não tinha que o fazer. Tivemos uma relação muito bonita ao longo dos anos”, despede-se Abrunhosa.