Senhor Fado
Carlos do Carmo “desfrisou” o fado. Retirou do fado os traços alambicados para se concentrar no sentir.
Carlos do Carmo impunha respeito, e vai continuar a fazê-lo na posteridade das suas melhores canções. Mas impunha o respeito, não por qualquer exercício de autoridade, mas porque ele próprio respeitava muito os outros. Não me esqueço do dia em que se abeirou de mim e comentou um memorável concerto de Camané a que acabávamos de assistir no Centro Cultural de Belém, na apresentação do álbum O Melhor de…. Estava ali um legado, ele que nunca reivindicou nada de parecido, excepto o da tradição familiar que vinha da sua mãe, a grande fadista Lucília do Carmo.
Carlos do Carmo “desfrisou” o fado. Como Alain Oulman, autor de tão decisivas canções para Amália Rodrigues, por outras vias, ele retirou do fado os traços alambicados para se concentrar no sentir. Isso, deve dizer-se, foi particularmente importante a nível internacional, pois até então a imagem do fado de Lisboa era sempre a da cantadeira com o xaile. Carlos do Carmo aparecia diferente: uma presença sóbria, mas com um profundo sentido da música e das palavras.
Cantou nas mais importantes salas de espectáculos do mundo, do Olympia de Paris, ao “Canecão” do Rio de Janeiro. Quando, há uns tempos atrás, fez os seus concertos de despedida nos Coliseus do Porto e Lisboa, foi uma falta que se nos suscitou. Foram grandes concertos, onde o não voltaríamos a ver. Mas ele tinha as suas razões. Tinha, de facto, problemas de saúde que já o preocupavam, e que agora tiveram este triste desfecho.
Carlos do Carmo aproximou-se do fado-canção. Para trás, ficaram títulos, por assim dizer, mais típicos, como Bairro Alto aos seus amores e Júlia Florista, com que tinha iniciado a carreira. Por isso, ele era, ao mesmo tempo, o Senhor Fado e alguém que transcendia o fado. Foi responsável por aquele que podemos considerar um álbum conceptual, Um Homem na Cidade, com poemas todos de Ary dos Santos e música de diferentes autores.
Foi um homem de Lisboa, e o seu título mais célebre, aquele que todos nós conhecemos, é Lisboa menina e moça, que, aliás, conforme poucos sabem, é um tema com música de Paulo de Carvalho.
Foi um homem na cidade também no sentido em que, como homem público, entendia ter responsabilidades de cidadania. Durante anos, esteve muito próximo do PC, o que, aliás, motivou alguma surpresa, pelo menos nas bandas daquele partido que eram aguerridamente anti-fado enquanto expressão do Antigamente – basta, evidentemente, citar o nome de Fernando Lopes-Graça. No entanto, quando da sua primeira campanha autárquica, António Costa convidou-o para seu mandatário. E, não sem alguma surpresa, e depois de ele próprio ter meditado, aceitou e, nos anos seguintes, permaneceu muito forte nessa ligação.
Era um homem de palavras e, ao ouvi-lo, sentimos sempre, com esse sentir que é tão próprio do fado, as palavras, os poemas que cantava. Isso aproximou-o também, naturalmente, da canção – do fado-canção e da canção propriamente dita –, e em 1976 houve um Festival RTP em que ele foi o único intérprete de todas as canções concorrentes.
Havia uma que lhe calhava particularmente bem, mas que, e bastante surpreendentemente, ele não retomou, que é No teu poema, de José Luís Tinoco. Dir-se-ia que o entregou a Simone de Oliveira, e ela cantou-a muito. Esse apreço pelas canções levou-o mesmo ao gesto temerário de abordar La valse a mille temps, essa terrível, difícil e maravilhosa canção de Jacques Brel.
Dedicou também o álbum em que era acompanhado por Bernardo Sassetti a autores recentes, por exemplo, com canções de Rui Veloso e Sérgio Godinho.
Muito se tem falado, nos últimos anos, das possíveis herdeiras de Amália, como se fosse possível que alguém o fosse. Carlos do Carmo deixa uma tradição, sobretudo no modo de estar e de apresentar o fado ao público. Evidentemente, permanecerá um intérprete único, no modo sempre aprumado, absolutamente afinado (coisa que, em boa verdade, não se pode dizer de todas as fadistas), como sabia o que é o sentido do fado e da canção.
Foi um homem, um fadista, que deixa um legado imenso.