E agora, quem defende o modelo sueco?
Este debate é com quem não nega a realidade e sabe como temos de defender o SNS para que ele nos proteja a todos. O SNS é a prova da nossa humanidade.
Não, o título não é uma provocação a Raquel Varela. Não foi a única a defender o exemplo sueco no combate à pandemia covid-19 e, no que toca aos seus argumentos particulares, a resposta dada pela Carmen Garcia arrumou o assunto com a propriedade de quem conhece a linha da frente onde se trava a batalha contra as doenças que nos ameaçam a vida. E onde nem sempre se ganha.
Mas a verdade é que perdi a conta às comparações feitas com o modelo sueco e às opiniões que elevavam aos píncaros as ideias das restrições mínimas e da responsabilização individual. Nas últimas semanas, os números desmentiam o sucesso escandinavo a cada dia, mas havia sempre alguém que ignorava os factos, torcia as estatísticas, comparava o incomparável ou, simplesmente, inventava argumentos para contornar a realidade, roçando o estilo das fake news. A frase lapidar do Rei da Suécia arrumou o assunto: “Falhámos”. Esperemos que não haja agora quem queira ser mais sueco do que os suecos e se preste a defender o que se tornou indefensável.
Este intróito serve para retirar de cima da mesa as distrações e centrar a conversa no essencial. Estamos na curva apertada da segunda vaga e com o horizonte carregado, tendo à vista uma possível terceira vaga pandémica já para janeiro – não podemos facilitar.
Os números estão melhores, é certo. Os novos infetados têm descido em cada semana e, com a latência esperada, o mesmo se passa com as pessoas internadas em hospitais ou em unidades de cuidados intensivos (UCI). Mas basta uma simples comparação com os números de setembro para percebermos os riscos que corremos. No início da segunda vaga havia em média menos de 500 novas infeções diárias, agora estamos muito acima das 2000. Nos internamentos ou em UCI o número de camas ocupadas era cinco vezes menor do que atualmente. E, no tocante aos nossos heróis da linha da frente, não tinham o cansaço acumulado de nove meses de pandemia. É, por isso, um ponto de partida completamente diferente, com uma margem de erro muitíssimo menor.
Já ouço alguém dizer que a vacina chegará ainda este mês a Portugal. No entanto, é preciso gerir esta informação com cuidado: por um lado, a primeira vacina a chegar a Portugal exigirá duas tomas com um mês de permeio (os que farão a primeira toma em dezembro só terão o processo concluído no final de janeiro); por outro lado, só em abril é que se concluirá a vacinação dos profissionais de saúde e das pessoas de maior risco. Não quero ser portador de más notícias, mas ainda temos muitos dias difíceis pela frente e essa é a oportunidade que a terceira vaga espreita para nos ameaçar, esperando que existam descuidos no período natalício e nas reuniões familiares.
O que fazer, então? Posso começar por repetir o que já sabemos todos mas que não podemos esquecer: manter a precaução nas relações sociais e familiares, para começar. Mas é preciso que o Estado também faça o seu papel, garantindo o sucesso nos desafios que enfrenta: responder à pandemia, assegurar a vacinação, recuperar os cuidados de saúde extra covid-19 e apoiar a economia e o emprego. Será que o Governo reconhece estas prioridades?
Prevenir é essencial. Se a terceira vaga nos ameaça, o Governo não se pode mostrar desprevenido como aconteceu na segunda vaga. O SNS não pode andar em sobressalto permanente, levando os seus profissionais à exaustão e suspendendo intermitentemente a atividade assistencial não urgente. Ainda estamos a tempo de planear, de dar ao SNS a possibilidade de requisitar os privados, liderar e planear o combate à pandemia e recuperar as consultas e cirurgias adiadas. Haja coragem de colocar o interesse público à frente da pressão dos lobbies privados da saúde. Essa é a obrigação de quem governa.
O modelo sueco afirmou-se na desresponsabilização de um Estado perante os mais velhos, abandonando-os à sua sorte em lares onde muitos nem sequer tiveram direito a uma avaliação médica. A Raquel Varela só se poderia perguntar se isto é humanidade, mas este debate não é com ela. É com quem não nega a realidade e sabe como temos de defender o SNS para que ele nos proteja a todos. O SNS é a prova da nossa humanidade.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico