Regulador da Saúde e ministra em guerra por causa de regulamento sobre transferência de doentes
Regulamento que começou a ser preparado há três anos e que define regras para a transferência de doentes entre estabelecimentos de saúde públicos e do sector privado e social foi declarado inválido pela ministra da Saúde. Regulador diz que Marta Temido não tem competência para isso e defende que regulamento continua em vigor.
Está declarada a guerra entre a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e a ministra da Saúde, Marta Temido. A ministra da Saúde acaba de invalidar o regulamento do regulador que definiu regras para a transferência de doentes entre os estabelecimentos públicos, privados e do sector social – um documento que demorou três anos a ser concluído e foi publicado há mais de um mês no Diário da República –, alegando que este não tem competência para o fazer. A ERS ripostou de imediato, num comunicado em que desautoriza Marta Temido, considerando, por sua vez, que a governante “não tem competência legal para declarar a invalidade de um regulamento de uma entidade administrativa independente”.
O resultado é que, para a ERS, o regulamento continua em vigor desde 3 deste mês, enquanto, no entender da ministra, não. O conflito surge numa altura em que se multiplicam as transferências de doentes do Serviço Nacional de Saúde para estabelecimentos do sector privado e social devido à sobrecarga dos hospitais públicos por causa da pandemia de covid-19. Mas no despacho da ministra que esta quinta-feira foi publicado no Diário da República não se percebe que circunstância ou que motivos específicos estiveram na base desta decisão, uma vez que o regulamento demorou cerca de três anos a ser concluído e contou com a participação “activa” do próprio Ministério da Saúde, como enfatiza o regulador. Iniciado em 2018 e sujeito a duas consultas públicas, o documento foi publicado no passado dia 3 de Novembro.
Com este regulamento, a ERS quis acabar com as “entropias” na transferência de doentes entre unidades de saúde e criar regras “mínimas” que uniformizam os procedimentos a adoptar pelos respectivos profissionais. Entre outras regras, determina-se que os acompanhantes têm o direito a ser informados sobre as razões da transferência e que compete ao hospital de origem informar o local para onde o doente vai ser transferido da sua situação clínica, garantindo o envio atempado do respectivo relatório clínico e a preparação do processo de transferência.
O doente deve ser acompanhado de uma “carta de acompanhamento da transferência”, em que constam os seus dados, o motivo da transferência, a indicação de eventuais riscos acrescidos e a identificação do seu responsável, entre outros elementos. O hospital de origem fica ainda obrigado a assegurar o transporte do doente, “com a utilização dos recursos humanos e materiais necessários”.
Questionado pelo PÚBLICO, o gabinete da ministra Marta Temido explica apenas que a análise jurídica ao regulamento “que pretendia definir regras sobre o processo de transferência de utentes” mostrou que esta matéria “não se enquadra nas funções legal e estatutariamente previstas para a Entidade Reguladora da Saúde”. Apesar de considerar que “não cabe ao Ministério da Saúde, no respeito pelos poderes das entidades administrativas independentes, pronunciar-se sobre os procedimentos utilizados na condução da sua actividade” e de ter “o dever de boa colaboração”, o gabinete da governante defende que o ministério “não pode abster-se de suscitar a questão da competência para a emissão do regulamento”.
Reagindo com “surpresa”, a ERS retorque que as regras foram definidas ao abrigo dos seus poderes e sustenta que os seus regulamentos “não estão sujeitos a aprovação ou autorização do Governo”. Recorda, a propósito, que o projecto que deu origem ao regulamento foi submetido por duas vezes a discussão pública e debatido pelo seu conselho consultivo, que é integrado por representantes dos prestadores dos sectores público, privado e social, de profissionais de saúde, de utentes e pelo membro responsável do Governo pela área da saúde.
“O Ministério da Saúde participou activamente neste processo, tendo remetido à ERS os contributos de entidades que fazem parte da sua esfera de actuação” e o conselho consultivo emitiu parecer favorável sobre a versão final do regulamento, por unanimidade, frisa. Em nenhum destes momentos, acrescenta, foi suscitada qualquer dúvida sobre a legalidade do projecto de regulamento ou sobre a legitimidade da ERS para o emitir.
Por entender que o despacho da ministra é, assim, um acto “que se situa fora das suas atribuições”, defende que não produz quaisquer efeitos jurídicos e que por isso “se mantém plenamente em vigor na ordem jurídica”. com Lusa