Por quem não esqueci
Se antes era a miúda muito profissional que tentava ao máximo manter a voz firme e cumprir todos os protocolos e normas de boa prática nestas situações, agora sou só a enfermeira que também é mãe, filha e irmã e que raramente não fica com os olhos cheios de água ou foge do abraço das famílias.
Tinha 19 anos na primeira vez que prestei cuidados a um corpo no pós-morte imediato. Porque não quis dar parte fraca, optei por não dizer à minha orientadora de estágio que nunca tinha visto um morto antes. Nem sequer os meus avós. Assim, enchi-me com toda a coragem que consegui reunir e avancei, de tabuleiro de metal em punho, para preparar o material necessário. Quando achei que tinha compressas, ligaduras e adesivos suficientes, entrei no quarto onde o corpo de um homem com a mesma idade e estatura do meu pai jazia. E não sei se foram as semelhanças na fisionomia ou o facto de ver um morto pela primeira vez, mas sei que as minhas mãos começaram a tremer de forma quase incontrolável. Imagino que a minha orientadora tenha reparado, porque me disse: “Não trouxeste mortalha nem saco de cadáver, vai buscar e aproveita para respirar fundo.” E eu lá fui.
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