Reconhecer à Seiva Trupe o lugar a que tem direito

Permitir a perda desta companhia-bandeira do Porto seria, ou será?, incontornavelmente bárbaro, como bárbaro é o destino que, assim, se aponta a várias outras estruturas.

Carta Aberta ao Senhor Primeiro-Ministro e à Senhora Ministra da Cultura

Excelências,

Escrevo na sequência do que quer ser a ‘sentença de morte’ ditada com a não-atribuição de apoio à Seiva Trupe e, consequentemente, a decisão tomada de demitir-me da actividade teatral. Desiderato que mantenho, mas suspendo até à conclusão deste processo e da ulterior decisão magna dos cooperantes. Faço-o para lá da minha vontade, no cumprimento responsável de preservar uma estrutura que tanto deu à Democracia, quer na sua vida, quer, antes ainda, na luta por ela. O meu tempo e desilusões devem ficar para segundo lugar.

Dito isto, não me permito gastar muito tempo a Vossas Excelências, quer por saber que o país atravessa períodos difíceis e complexos que absorvem, naturalmente, a atenção do Governo, quer por ter noção da absoluta relatividade do que represento e sou no meio cultural. O mérito que terei ou não, não posso ser eu a julgar em causa própria, mas o da companhia a que me deram a honra de presidir, a Seiva Trupe, posso. Mas porque tanto posso eu quanto Vossas Excelências e quanto o já fizeram as centenas de milhares de portuenses – e não só – que a aplaudiram, seria despiciendo evocá-lo. Se Vossas Excelências tivessem para isso tempo e fossem ao Porto falar ao acaso com um motorista de praça, um lojista ou um professor universitário, verificariam seguramente, sete ou mais vezes em cada dez, o que estou a dizer e porque o digo.

Por isso, o que verdadeiramente aqui me traz é aproveitar para, no apelo veemente para reconhecerem à Seiva Trupe o lugar a que tem direito, acrescentar um outro sentido útil ao que me faz, dolorosamente e aos 53 anos de teatro, 47 profissionalmente, imolar essa paixão à dignidade pessoal que prefiro ter. Digo, então, uma chamada de atenção para o que, no plano da comunidade, de pior acontece no e ao teatro português. E assim, mais do que denúncia do que de lastimoso e lastimável começa a montante do exercício político de Vossas Excelências, está uma vaga esperança de que o interrompam. Porque na continuidade da coisa partilham a responsabilidade de ainda o não terem feito, e com ela objectivamente se cumpliciam.

Ao caso, refiro-me sobretudo aos júris que decidem do apoio ou não (e da vida, pois) das estruturas teatrais através da ‘análise’ de candidaturas, como se de uma redacção se tratasse, sem terem em conta, nem conhecerem, a actividade da maioria de quem se arrogam um direito, não escrutinado, de julgar discricionariamente sem sequer verificar da veracidade das afirmações produzidas, até ao nível de equipas indicadas ou curricula vitae apresentados. Trata-se, de facto, de um processo intelectualmente (e talvez não só) em si mesmo fraudulento; e posteriormente prolongado como tal na fiscalização e avaliação do que fica (ou não) feito, incluindo contas, número de sessões ou de espectadores apresentados.

Ora, acalentei esperanças quando ouvi o Senhor Primeiro-Ministro – em almoço público nos Fenianos, no Porto – anunciar que isso mesmo ia acabar, pois companhias com o património histórico (como o da Seiva Trupe) não podiam continuar sujeitas a tal arbítrio: por elas e o que elas representavam de “serviço público de anos à comunidade”, mas mais ainda, pela imperiosa “necessidade de uma política estruturada e estruturante” da nossa vida teatral o exigir. E fiquei ainda mais revigorado quando a Senhora Ministra da Cultura o reafirmou. Porém, o projecto de modelo anunciado para a partir de 2022 vigorar não o confirma, antes o desmente, desde logo mantendo júris e em tudo mais parecendo um pneu careca recauchutado para enganar na inspecção, ao caso a da Senhora Ministra, certamente muito mal aconselhada. Além disso é bom dizer o óbvio: é que para sequer se chegar lá, seria necessário que, agora, não fossem as estruturas (como a Seiva Trupe) excluídas por esses mesmos júris; ou que, in extremis, solução ministerial, cuja há em se querendo, se salvassem as estruturas, sem mesmo tocar nos hediondos concursos.

É que, mais grave do que o factual, o que está por detrás é uma política assente na preferência pelo evento e não pela tal actividade estruturada e estruturante; por critérios de gosto e afinidades pessoais, e até geracionais, num total desrespeito pelo elemento público, sem o qual não chega a existir verdadeiramente teatro. É isto tudo tão grave, quanto grave é a atomização de verbas, que anula o efeito educacional e de valor repercutivo que se esperaria do investimento na cultura. Coisa que, ainda por cima, ao contrário da falácia em nome do que se tenta justificar o disparate, não fomenta o emprego artístico, antes agrava a falta dele, justamente porque tudo é solúvel e precário, a começar pelas estruturas, destruindo-se o tecido produtivo teatral. Ou seja, em suma, o que isto quer dizer é que o teatro, o financiamento do teatro com dinheiros públicos, não é olhado como um dever constitucional com uma indispensável componente de serviço à comunidade, mas apenas um expediente de adorno, com ‘a’ minúsculo. Como se, por redução ao absurdo, o Serviço Nacional de Saúde se pautasse pelo prazer da prática médica entre amigos e conhecidos da mesma escola e não de resposta às necessidades da saúde dos portugueses.

Dito isto, se eu sou dispensável ao teatro português e se o que possa ter feito pode ir retrete abaixo, já permitir a perda desta companhia-bandeira do Porto seria, ou será?, incontornavelmente bárbaro, como bárbaro é o destino que, assim, se aponta a várias outras estruturas. A isso, de forma imprudente, ficarão, ou ficariam?, os nomes de Vossas Excelências associados por inacção. Quero acreditar não ser essa a intenção, mas em política, como Vossas Excelências sabem melhor do que eu, não se julgam intenções, mas actos ou a ausência deles. Quero crer que o bom-senso imperará e ainda eu mesmo possa, à mesa de encenação ou num palco, um dia dizer que há males que vêm por bem. Ou serei (ainda) tão ingénuo?

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