Maradona: tantas vezes Deus vestiu a pele de homem
Maradona alimentou estereótipos e julgamentos porque nunca se esqueceu da sua imagem de Deus e da dor de a ver esvair-se em homem.
Quando Maradona desatou a chutar todos os nossos super-heróis para um canto, fê-lo com um toque único de divindade. Como se os obrigasse a vergar naturalmente, por não haver comparação. Mais do que magia, mais do que um poder, superior. Diego elevou-se a Deus, Maradeus.
E nós assistimos a este confronto pagão, olhos postos no esplendor da relva, sujeitos àquela bola irmã e colada aos pés, corpo em rajada de energia com o centro de gravidade a atirar nível-abaixo os rins dos oponentes, enquanto nos alimentávamos das borboletas que sabíamos estarem sempre no limite de poderem aparecer quando nos enfrentava e maravilhava, adversários ou adeptos, a nós, humanos.
Sei onde estava a 22 de Junho de 1986. Estava no “meu primeiro Mundial”, o do México, o que sucedeu ao Mundial de Espanha 82, onde, fruto da idade, era bem mais próximo do Naranjito e da colecção de cromos do que propriamente do que se passava no campo.
Mas, nesse dia, Diego deu-me uma descendência directa de filigrana: a jogada individual do século contra a Inglaterra, a vingar as Malvinas, a acrescentar divindade ao primeiro golo humano com a mão. A mão do homem e o pé de Deus, naquele início de segunda parte.
Quando vi o Paulo a querer fazer algo semelhante na final de Viena em 87, chamei-lhe Diego Futre. E é um pouco assim, agora. Tantas e tantas jogadas já são de El Pibe que, à semelhança dos Beatles, parece que tudo já foi escrito naquele livro de estilo.
Tantas vezes Deus vestiu a pele de homem que morreu. Não que tenha morrido por o ser. Maradona alimentou estereótipos e julgamentos porque nunca se esqueceu da sua imagem de Deus e da dor de a ver esvair-se em homem. Esteve demasiadas vezes do lado certo, parecendo ter as atitudes erradas, excessivas ou imperfeitas.
Em 84, pediu à FIFA e ao Nápoles para organizar um jogo particular de solidariedade de forma a conseguir arrecadar dinheiro que viabilizasse a operação de uma criança pobre de um bairro napolitano. Perante duas respostas negativas, organizou o jogo à frente da sua casa. O seu desassossego. Não se enganou muitas vezes. Fez opções, era um sedutor.
Morreu tarde para os artistas. Não era alto e chegou lá com a mão. Coisas só ao alcance dos deuses.