“Marcaste com a mão, não foi?” E eu respondi-lhe: “Cala a boca e continua a festejar”
No dia 22 de Junho de 1986, a Argentina derrotou a Inglaterra. O jogo ficou para a história – pela vitória e pelo golo que Maradona marcou com a mão. “Não me arrependo, de todo. Não me arrependo! Com todo o respeito que me merecem os adeptos, os jogadores, os dirigentes, não me arrependo nem um bocadinho”, escreveu na autobiografia A Mão de Deus: A Minha Verdade, editado em Portugal em 2016 pela Vogais. Publicamos aqui o capítulo em que Maradona narra esse dia inesquecível.
Se dependesse dos argentinos, tínhamos de entrar em campo com uma metralhadora cada um e matar Shilton, Stevens, Butcher, Fenwick, Sansom, Steven, Hodge, Reid, Hoddle, Beardsley, Lineker. Mas nós até nos tentámos alhear de tudo isso. Eles eram, simplesmente, os nossos adversários. O que eu queria, apenas, era fazer-lhes umas chapeladas, meter-lhes umas cuecas, fintá-los, marcar-lhes um golo com a mão e mais outro, o segundo, que fosse o maior golo da história.
Lembro-me bem. Quando os jornalistas se inteiraram de que íamos jogar contra a Inglaterra nos quartos-de-final, nós até evitámos falar, porque sabíamos bem quais iriam ser as perguntas: como íamos gritar os golos que lhes marcássemos, se íamos fazer fuck you à Thatcher, se íamos dar um murro ao Shilton. Sabíamos o que aí vinha, por isso decidimos manter-nos serenos e alheados disso. Em todo o caso, por dentro, era uma questão que mexia connosco. Asseguro-vos que, por dentro, eu estava a arder. Explodia-me o coração e era preciso jogar com ele.
Na nossa preparação para o jogo, porém, o tema da guerra não passou desapercebido. Nem podia passar! A verdade que os ingleses nos tinham matado muitos rapazes, ainda que, se os ingleses tiveram culpa, culpa tiveram também os argentinos que mandaram os nossos rapazes enfrentar a terceira potência mundial em sapatilhas de pano. Uma pessoa nunca perde o patriotismo, mas claro que teria preferido que não tivesse havido guerra. E, tendo havido, que a tivéssemos ganho nós. Lembrava-me bem de 1982, quando chegámos a Espanha: era um massacre de pernas e de braços de todos aqueles rapazes argentinos espalhados pelas Malvinas, enquanto a nós os filhos da puta dos militares nos diziam que estávamos a ganhar a guerra.
Então, como eu me recordava perfeitamente daquilo, não joguei o encontro a pensar que íamos ganhar a guerra, mas sim a pensar que íamos honrar a memória dos mortos, dar um momento de alegria aos familiares desses rapazes e tirar a Inglaterra do plano mundial… futebolístico. Deixá-los fora do Mundial nessas circunstâncias seria como fazê-los vergarem-se.
Era uma batalha, sim, mas no meu campo de batalha.
Não podia pôr as culpas de tudo o que acontecera em Lineker. Não, não podia! Aquilo era um jogo de futebol e foi assim que todos o encarámos. Porque os ingleses foram cavalheiros connosco. Mesmo depois de lhes ganharmos, felicitaram-nos e vieram até ao balneário trocar camisolas. Digo-vos: queriam fazer de mim inimigo de Inglaterra e eu não o sou. A mim, o facto de eles, por exemplo, se recordarem de Bobby Charlton passados 70 anos de ele ter pisado um relvado pela última vez emociona-me. E, lamentavelmente, penso que é algo que na Argentina não verei nunca. Pois se Tata Brown foi campeão do mundo e numa tarde, há alguns anos, nem sequer o deixaram entrar no estádio do Estudiantes…
Falámos disso na concentração, antes de sairmos para o encontro. É evidente que não era só mais um jogo. Como podia ser só mais um jogo, se desde que se ficou a saber quem seria o nosso adversário não pararam mais de nos tentar dar a volta à cabeça?
Tínhamo-los ido ver jogar, contra o Paraguai, ao Azteca. Ganharam com facilidade. A mim não me surpreendeu que tivessem passado; eram melhores.
Contra eles, nós íamos jogar pela primeira vez naquele estádio e ao meio-dia. Como ficava a apenas cinco minutos do nosso local de estágio, a saída do autocarro ficou marcada apenas para as 9h30. Mas às 9h00, meia hora antes, já estávamos todos à porta, como soldados disciplinados. Eu, que durmo sempre como um animal, tinha acordado mais cedo do que nunca. Estava ansioso pela chegada da hora do encontro, cheio de vontade de que o encontro começasse e toda aquela conversa acabasse…
E, no balneário, continuámos com o mesmo. A única coisa que dizíamos era que íamos jogar uma partida de futebol. Tínhamos perdido uma guerra, sim, mas não por culpa nossa nem por culpa daqueles que íamos ter pela frente. E creio que isso foi suficiente para entrarmos com a intensidade necessária. Foi isso que disse aos rapazes, porque estávamos realmente saturados.
Os rituais, fizemos todos. Exatamente como nos jogos anteriores. Eu, antes de Carmando me meter as ligaduras como só ele sabia, desenhava um jogador no chão. E ai de quem o pisasse! A Virgem de Luján também estava onde tinha de estar. Estava lá tudo!
Há uma foto de que me recordo sempre, muito bonita, muito especial. É do momento da entrada das duas equipas, por uma espécie de rampa que o campo tinha por detrás de uma das balizas. Havia quase 115 mil pessoas no estádio, mas eu só ouvia o som dos pitons das chuteiras a baterem no chão, meio metálico. Já não falávamos.
Já nos tínhamos cumprimentado a todos, porque antes dessa rampa de acesso ao relvado havia uma espécie de sala onde os adversários se cruzavam. Eu tinha jogado com Glenn Hoddle na partida de despedida de Osvaldo Ardiles com a camisola do Tottenham e tinha uma boa relação com ele. Todos os ingleses encararam o jogo com seriedade e com um respeito enorme, como devia ser, e nós também, com a mesma seriedade e o mesmo respeito.
Para eles também era um momento muito difícil. Ficámos a saber que, antes do jogo, lhes tinha falado um tipo qualquer importante, creio que o ministro do Desporto, ou algo assim, dizendo-lhes para não se meterem em confusões com declarações e para não se deixarem levar pela temperatura do jogo. Estávamos, portanto, todos na mesma onda.
O peso de tudo o resto estava lá fora e podia acabar por contagiar as pessoas, os adeptos.
Porque o que o público queria, também, era ver futebol. Mas o certo é que a questão política estava a ser vivida muito mais de fora, entre eles e entre os próprios governos, do que entre nós, os jogadores. A política usou sempre o futebol e vai continuar a fazê-lo. Que não reste a menor dúvida quanto a isso. Não é a mesma coisa tirar uma foto com um jogador de pato ou tirar uma com um jogador de futebol, e os políticos sabem e saberão sempre isso, por mais séculos que passem. E não é o mesmo ganhar um Mundial, ter uma seleção que ganhe um Mundial e que, assim, tranquilize as coisas.
Hoje, com os ingleses, dou-me que é uma maravilha. Posso dizer que cada vez que um Maradona aterra em Inglaterra, como se passou com Dalma ou com Gianinna, basta apresentar o passaporte para lhe dizerem “You, legend”. Gosto muito de ver como os ingleses mudaram, como passaram de hooligans que matavam toda a gente ao que são agora, onde te podes meter com uma camisola do Arsenal ao lado de alguém com uma do Newcastle e não se passa nada.
E, falando de camisolas, a azul que usámos contra a Inglaterra, precisamente, tem uma história especial, muito especial.
Para um jogo muito especial, uma camisola muito especial
A Le Coq Sportif tinha feito uma camisola titular linda, muito linda. Com uns furinhos e tudo, ideal para o calor terrível que fazia no México, sobretudo naquele insuportável horário do meio-dia. Mas esqueceu-se de que numa ou noutra partida teríamos de jogar com o equipamento alternativo e não se preocupou muito com ele, parece-me. Quando jogámos contra o Uruguai, em Puebla, desatou a chover e a camisola azul que nos tinham dado pesava mais do que um pulôver molhado. Quando se supôs que contra a Inglaterra nos voltaria a tocar ter de jogar com o equipamento alternativo, porque eles iam jogar de branco, entrámos em desespero: com o sol do meio-dia e a altitude da Cidade do México, vamos jogar de pulôver? E contra a Inglaterra?! Nem morto!!!
Pedimos, pois, à marca que nos fizesse uma camisola azul com buraquinhos, como a do equipamento titular, mas disseram-nos que não havia tempo, que não chegariam a tempo. Bilardo começou, então, a furar as camisolas com uma tesoura. Uma loucura…
E lá teve de ir o pobre Rubén Moschella, o funcionário administrativo da AFA, que resolvia tudo. Tinha sido ele a conseguir a lista com os números de telefone, da qual pude sacar os gastos de Passarella. Como é que não havia de conseguir um conjunto de camisolas azuis? Bem sei que agora parece uma anedota, mas naquele momento foi um verdadeiro drama. E a verdade é que, de facto, nos dias de hoje toda essa história parece uma piada para um qualquer plantel profissional: alguém imagina uma seleção atual, num Mundial, à procura de camisolas alternativas pelos bairros de uma cidade, como se as estivesse a procurar no Once, em Buenos Aires? Mas o certo é que a história foi mesmo essa.
Em quarenta lojas entrou Moschella. Quarenta. Alguns dizem que até foi à casa de material desportivo que pertencia a Zelada, mas nem o Zelada se lembra. O que importa é que Moschella encontou duas variantes de camisolas, em duas dessas lojas. Mas nenhuma tinha os furinhos das do equipamento original. Esse era um desenho especial. Deixou-as reservadas em ambas as lojas e teve o cuidado de ir até ao nosso local de estágio com os dois modelos, para consultar qual comprar. Podia ter comprado os dois conjuntos de equipamentos das duas lojas, mas era assim que se poupava dinheiro naquela época!
E pronto, ali estavam os dois modelos, para escolhermos qual vestir, um dia antes do jogo. Perguntaram-me a mim e não tive dúvidas de que era o segundo. Meti o dedo em cima de uma das camisolas e disse: “Esta! Com esta ganhamos à Inglaterra.”
À “esta”, claro, faltavam o emblema e os números. Um pequeno detalhe. O escudo bordaram-nos as costureiras do América. E fizeram-no bastante bem, mas percebe-se que já estavam a dormir em pé, porque se esqueceram de pôr os louros.
E os números, os números foram um terror… Quando entrámos em campo, alguns de nós ainda tínhamos brilhantina na cara. E o Negro Tito Benrós, o génio dos roupeiros, nem vos conto. Parecia mais pronto para o carnaval de Gualeguaychú do que para entrar no Azteca, depois de estampar 38 camisolas à mão com um ferro de engomar! É que fizemos os números prateados, com brilhantina. Se desatasse a chover, como no jogo com o Uruguai, armava-se uma confusão bárbara, não iam saber nem quem éramos nem por quem jogávamos…
Assim, com brilhantina na cara e nas mãos, fomos dormir quase às onze da noite. E o jogo tinha lugar no dia seguinte, cedíssimo.
Não podíamos dar nem um passo atrás
Mas a história das camisolas não foi a única a agitar a preparação para aquele jogo.
Como se não bastasse o facto de irmos jogar contra a Inglaterra, Bilardo foi ter comigo ao quarto, que eu partilhava com Pedro Pasculli. Ao contrário do que era hábito, pediu-me se podia sair. Claro, com o que me ia dizer…
— Diego, vou tirar o Pasculli…
— …
— Vou arriscar.
— Você é que sabe, essa é a sua área — respondi.
— A única coisa que lhe posso dizer é que vai destroçar um rapaz, que está ali dentro, que vem de marcar o golo da vitória contra o Uruguai.
— Sim, mas eles vão cair-nos muito em cima por ali.
A mim, a única coisa que me importava era consolar Pedro, que chorava como um miúdo. E a única coisa que me tranquilizava era que para a equipa inicial ia entrar o Negro Enrique, um monstro. Um tipo que já tinha obrigado Bilardo a mudar de ideias ao convocá-lo, mesmo não tendo praticamente jogado na Seleção antes, e que obrigava agora Bilardo a mudar novamente, com a sua personalidade, para lhe dar um lugar na formação titular.
O outro jogador que ia entrar era o Basco Olarticoechea. Para mim, um ás de espadas. Nunca tinha sido titular até ali. Mas notava-se que, fisicamente, se tinha adaptado de forma fenomenal à altitude e que cada vez que entrava, vindo do banco, jogava muito bem. Mas o Basco só ia entrar para o lugar de Garré porque este tinha atingido o limite de cartões contra o Uruguai. Se não fosse isso, não sei se teria entrado… Não quero ser repetitivo, mas aquelas palestras táticas de Bilardo que dizem que duravam uma hora, é mentira; duravam uns vinte minutos, se tanto. E algumas coisas, várias, nem as dizia. A de Enrique, por exemplo: o Negro não sabia sequer que ia jogar a partida. Não fazia ideia. E mais: só o ficou a saber no próprio dia. E querem saber mais uma coisa sobre o Negro Enrique? Não tinha chuteiras, não tinha nenhuma marca que lhe desse chuteiras. Lá o juntei à Puma, para o Mundial, para que ele tivesse com que jogar o Mundial. Digam-me um jogador dos dias de hoje que alguma vez tenha passado por isso… Agora até os miúdos dos juniores já têm chuteiras dadas pelas marcas!
Mas pronto, com a entrada de Enrique, íamos mudar taticamente e, assim, bloquear muito mais o meio-campo, com Burruchaga mais descaído para a esquerda, apoiado nesse lado por Giusti. Do outro lado, el Negro fazia o mesmo com Olarticoechea por trás. No meio, Checho. Atrás, como líbero, Brown, com Cucciuffo e Ruggeri como centrais de marcação. No ataque, Valdano, que recuava um pouco, e eu.
A formação histórica, aquela da tal revolução tática de Bilardo, a que todos recordam, apareceu apenas nos quartos-de-final. Até aí jogámos sempre com quatro na defesa, não se esqueçam.
O que se passa é que aquela equipa era muito inteligente. Jogou contra cada adversário como tinha de jogar. Não houve uma equipa que nos tenha passado por cima ou que tenha jogado de igual para igual. Nãoooo! Bem pelo contrário! Exceto alguns minutos frente à Inglaterra, no final do jogo, nunca passámos por sobressaltos.
Tínhamos visto os ingleses ganharem 3 a 0 ao Paraguai. Sabíamos que tinham um bom meio-campo, combativo, mas também sabíamos que já não eram novos. Olho para a formação inicial deles e confirmo o que estou a dizer: Shilton; Stevens, Sansom, Fenwick e Butcher; Hoddle, Reid, Steven e Hodge; Lineker e Beardsley.
Ao Hoddle. eu conhecia-o e sabia que era um jogador com o qual tínhamos de ter atenção, pois rematava bem com os dois pés e era ele que organizava a equipa a partir do centro do terreno. E ao Beardsley, que ia a todas. Também falámos disso com Bilardo. Não contávamos era com o morenito do Barnes, que entrou e nos complicou a vida… Cada vez que vejo Barnes, e já o vi muitas vezes, em jogos da Champions, em Inglaterra e também no Dubai — está gordito, como eu —, ele faz questão de me dizer, a sorrir: “O cagaço que vos preguei!” E tem razão. Pregou-nos um susto enorme, mas isso foi só no final da partida. Até aí fomos nós a mandar no jogo.
É inevitável que algo sobre isso nos passasse pela cabeça, por muito que nos tivéssemos preparado para que não fosse assim. Toda aquela conversa da guerra… Na primeira parte jogámos algo nervosos. Foram necessários quarenta e cinco minutos para superar esse nervosismo.
Vínhamos de um jogo contra o Uruguai. E, como já disse, o Uruguai tinha sido e acabou por ser, para mim, a minha melhor exibição e também a melhor exibição da equipa. Mas, sem querer faltar ao respeito ao Uruguai, agora enfrentávamos a Inglaterra. E eu estava convencido de que a Inglaterra estava num patamar acima do Uruguai. Mas isso não implicava que lhes tivéssemos mais respeito futebolístico. Estávamos num caminho vitorioso e não podíamos dar um passo atrás. Não podíamos! Tínhamos de continuar a apostar no ataque. Se perguntarem a Valdano, ele conta-vos como foi. Ao intervalo, eu disse: “Rapazes, rapazes! Nem mais um passo atrás!” Sentia que estávamos a contemporizar em demasia e não gostava nada disso… Bilardo nem piou. Não disse uma palavra. Ou melhor, disse. “Tens razão, Diego”, foi o que ele disse.
No que estava eu a reparar? Em várias coisas. Primeiro, no estado do relvado… Horrível, horrível. Por acaso, se compararmos depois com o jogo da final, até podemos dizer que estava muito bom, mas a verdade é que o estado do relvado era lamentável. E o que se passava era que nós estávamos mais habituados, talvez por treinarmos muitas mais vezes em campos assim, por isso adaptámo-nos melhor a um relvado como aquele, pelo que vínhamos fazendo nos campitos do América.
Segundo, no calor. Fazia um calor que não se podia… Mas eles sofriam muito mais com esse calor do que nós. Cansavam-se muito mais depressa do que nós.
E terceiro, mais importante, a altitude. Eles vinham de jogar em Monterrey, em plano. Nós já tínhamos disputado duas partidas na Cidade do México e, além disso, era ali que estávamos alojados. Já não nos explodia o peito, quase já voávamos na altitude…
Por isso, às vezes tinham entradas fora de tempo. Mas sem má intenção. Nunca tinha voltado a ver o jogo por completo, até agora, e ao revê-lo confirmo o que senti naquele momento: que o encontro foi jogado com total lealdade. Se virem, vão constatar que só os ingleses é que nos iam dando uns pontapés, mas ajudavam-nos sempre a levantar a seguir. Não se vê nenhuma tensão especial, como se se estivesse a jogar algo mais do que uma simples partida de futebol. Não se via mais do que a tensão natural da importância da eliminatória que estávamos a jogar.
Nem sequer houve marcações homem a homem, nem mesmo a mim. Joguei sempre solto pelo campo. Não sei se Robson, o selecionador da Inglaterra, terá pensado que a mim, muitas vezes, me facilitavam a vida quando me punham alguém em cima, a marcar-me, mas o facto é que não meteu ninguém a fazer-me marcação individual.
Movimentava-me, pois, livre no ataque e tinha a mesma liberdade para recuar no terreno até onde quisesse. Corria até ao meio-campo, e às vezes até mesmo um pouco mais atrás, porque assim ajudava a fechar alguns espaços, para que os meus colegas não sofressem tanto.
Foi dessa forma que fomos crescendo como equipa. Vejamos: nós não crescíamos como equipa nos treinos, crescíamos como equipa nos jogos. Que isso fique claro para toda a gente.
Eu sentia-me melhor do que nunca até ali. Voava! Agarrava a bola e, com o meu pique curto, ganhava metros em segundos aos adversários. Só punha as pontas dos pés no chão e saía disparado, qual Usain Bolt. A mim costumava aborrecer-me ver jogar as equipas de Bilardo, mas não me aborrecia jogar numa equipa de Bilardo, entendem?
E não me aborrecia porque todos me passavam a bola; sabiam que essa era a primeira opção e sabiam que eu estava sempre disponível, fosse onde fosse e contra quem fosse. Já toda a gente nos tinha outro respeito. Até os árbitros. E nesse jogo o árbitro era o tunisino Alí Bennaceur, que tinha dado conta dos pontapés que me tinham dado os coreanos, primeiro, e os uruguaios, depois, no jogo anterior.
Digo-o sem sequer pensar no que viria a fazer depois, porque ainda antes dos dez minutos, a partida mal tinha começado, tive uma arrancada, a primeira: deixei para trás dois ingleses e Fenwick derrubou-me quando já estava a chegar à área. O tunisino foi lá e deu-lhe logo o amarelo. Foi um sinal, um bom sinal… Tudo, a jogada e a admoestação. Porque ia ter mais um desses arranques e Fenwick seria um dos que se me cruzariam no caminho. E acredito que o cartão amarelo o tenha condicionado. A mim, serviu-me para marcar terreno, mesmo que a jogada não tenha dado em nada.
Depois, houve um cabeceamento do Cabezón Ruggeri que passou por cima da trave e, à passagem dos quinze minutos, Nery, que nunca falhava, era como um relógio, pregou-nos o primeiro susto… Quis levar a bola com os pés e, como é guarda-redes, perdeu-a. Roubou-lha Beardsley, que era um jogador que me encantava e que de pronto rematou, de ângulo apertado. Eu, que estava na outra metade do campo, vi a bola voar, a fazer um arco, e pensei “já fizemos merda”. Mas não, a bola bateu nas redes laterais, do lado de fora.
Creio que foi uma das poucas situações de golo deles. Éramos nós quem ditava o ritmo do jogo e quem controlava a posse de bola. A verdade, a verdade é que o jogo era um bocejo para quem o via, mas o importante é que nós estávamos a ser muito inteligentes nas nossas movimentações, sobretudo a partir do meio-campo para a frente. E atrás as coisas iam-se afinando. Qual Káiser, qual quê! O Tata Brown era um Marechal! Ruggeri e Cucciuffo comiam os tornozelos dos adversários, como centrais. E Giusti e o Basco eram dois autênticos relógios pelas alas. O Gringo até se aventurava a chegar à área inglesa. Porque, evidentemente, ainda não lhe tinham metido o negrito do Barnes no seu flanco. Podia, pois, ser mais um médio, que era onde se sentia bem, do que um lateral, onde se perdia um pouco… Mas nessa primeira parte até teve um lance em que chocou com Shilton. Escorregou e acabou por levar o inglês à frente, mas nem aí se passou nada… Contra outro adversário talvez começasse tudo ao murro, como quase sucedeu perto do fim do jogo com os uruguaios. Mas contra os ingleses, justamente contra os ingleses, a situação resolveu-se com todos a apertarem a mão, pedindo desculpas. Volto a ver o lance e confirmo-o. Foi assim.
É possível que ninguém se lembre disso, nem de que à meia hora do primeiro tempo tive mais um arranque parecido com o que veio depois, este contudo sem terminar em golo. Terminou em falta. Depois marquei o livre, que era mais ao centro, agora que vejo, mas que eu bati muito descaído para a direita. Queria metê-la lá dentro… Seria essa a minha vingança, não andar ao murro com os ingleses. Chutei, mas a bola bateu na barreira e saiu para canto. E aí enervei-me, mas não com os ingleses. Enervei-me com a bandeirola de canto. Estava a incomodar-me, como estavam a incomodar-me todos os fotógrafos sentados ali. Então tirei a merda da bandeirola de canto vermelha. Lembro-me bem; veio Ulloa, o fiscal-de-linha, e obrigou-me a metê-la no sítio.
— Não me chateies — disse-lhe, irritado.
— Deixo de te chatear quando meteres a bandeirola no sítio — respondeu-me o tipo.
— Está bem, eu ponho-a. E no próximo Mundial jogo a fiscal de linha.
Para ser honesto, Ulloa esteve bem. Até me podia ter admoestado e não o fez. Lá pus a bandeirola, só em cima do pau, primeiro, e depois acabei por enfiá-la. Há uma foto espetacular desse momento…
De seguida, tive mais outra arrancada, de 60 metros. Estava ligeiro, ligeiríssimo. Arrancava e sabia que não me iam conseguir acompanhar. Ou me deitavam ao chão, ou eu seguia, como deitaram uma vez com um uma cotovelada, sem que o árbitro visse. Mas, bem, o que posso apontar ao bom do Bennaceur, certo? Se essa que não viu serviu para que não visse também a outra, melhor… Sim, é verdade que um inglês me acertou, mas não o fez de propósito: ele estava a rodar e eu apareci de repente. Por isso nem reclamei: falei com ele, sim, no meu inglês perfeito, estão a ver, mas apenas para lhe tentar explicar que percebia o que se tinha passado. De facto, foi um jogo de cavalheiros.
Os ingleses ainda voltaram a chegar perto da nossa baliza antes de terminar a primeira parte, mas só com um par de remates de longe. Faltavam-lhes ideias e nós é que tínhamos tido quase sempre a bola.
Mas, honestamente, eu não tinha gostado. Aquele nosso domínio não nos servia de nada se continuássemos assim. Era preciso meter a bola lá dentro. Por isso disse o que disse ao intervalo, no balneário. Não queria que nos conformássemos com o que já tínhamos feito.
Mal arrancou o segundo tempo, fiz o mesmo de sempre, mas desta vez com uma intenção especial: benzi-me. Toquei a bola para Valdano e o jogo seguiu. Não queria perder nem um segundo. Queria ganhar aquele jogo houvesse o que houvesse e sentia que tinha chegado a hora de mudar a história.
Cinco minutos foi o que tive de esperar. Cinco. Apenas isso. Quando o Basco, que tinha ultrapassado a linha de meio-campo com a atitude de um avançado — porque isso era uma das coisas boas que o Basco tinha, era um defesa que tocava na bola como um médio e que atacava como um avançado —, eu comecei a correr, com a bola dominada, na diagonal da esquerda para o meio, com os olhos postos na baliza. Imaginei a jogada na minha cabeça e ela só podia ser daquela maneira, de verdade, porque estava toda a gente marcada… Procurar uma camisola azul para fazer uma tabelinha e, depois, seguir sozinho.
Quando tentei, então, tabelar com Valdano, a bola ressaltou e subiu um pouco, com Hodge ali mesmo ao lado. Hodge antecipou-se, mas cometeu o erro — que para mim não foi um erro, porque naquela altura ainda se podia atrasar a bola ao guarda-redes — de levantar a bola para Shilton em vez de a aliviar para longe… Se Hodge tivesse simplesmente aliviado a bola, ela nunca chegaria a mim. Nunca.
Mas caiu na minha direção como um balãozito. Aaahhh, que brinde…
“Esta é minha”, pensei. “Não sei se vai dar, mas arrisco. Se marcar falta, marcou.” Saltei como uma rã e Shilton não estava à espera disso. Ele pensava, creio, que eu fosse chocar com ele. Mas saltei como uma rã, reparem nas fotos; refiro-me à posição em que estava o meu corpo.
Ganhei a Shilton porque, fisicamente, estava uma fera. No salto, eu saltei antes porque estava a olhar para a bola, enquanto ele fechou os olhos.
Shilton tinha o hábito de afastar a bola a soco e, ao tentar fazê-lo, atrapalhou-se um pouco. Se olharem para as fotos, a distância que há de Shilton para a minha mão e para a bola é grande. Há fotos em que Shilton nem aparece e, se repararem nos pés, eu já estou no ar, continuo a subir, a subir, e ele ainda nem descolou do chão.
Digo que no salto pareço uma rã porque tenho as pernas encolhidas, como que em cruz, como quando se alonga os adutores, de costas para ele, e notam-se até as costelas… Percebe-se que não tinha um grama de gordura e que tinha as pernas bem fortes.
Quando caí, saí de imediato para festejar o golo. A bola tinha saído fortíssima. Dei-lhe com o punho mas saiu como se tivesse sido um tiraço de cabeça. Bateu no fundo das redes e tudo. Da maneira como foi, ninguém podia nunca perceber como tinha sido… Nem o árbitro, nem o fiscal de linha, nem Shilton, que ficou perdido à procura da bola. Quem viu foi Fenwick, que tinha sido o último a entrar na área comigo. Mas mais ninguém. Protestaram todos de ouvido, até Shilton, que nem percebia o que lhe tinha acontecido.
Olhei para o árbitro e ele não tomava qualquer decisão; olhei para o fiscal de linha, o mesmo. E continuei a correr para os festejos. Decidi eu o que eles não se resolviam a decidir. Bennaceur, mais tarde, contou-me que olhou para o fiscal de linha. O fiscal de linha, que era um búlgaro, Dotchev, ficou a olhar para ele: nem levantou a bandeira, nem saiu a correr para o meio campo; fugiu a qualquer responsabilidade, quando era ele que estava de frente para a jogada. Mais tarde pegaram-se por causa disso, acho, porque cada um dizia que a culpa era do outro.
Eu prossegui os festejos, sem olhar para trás. Checho foi o primeiro a chegar ao pé de mim, mas muito lento, como que a pensar “não vai valer, não vai valer”. Eu queria que viessem mais para se juntarem aos festejos, mas só o Valdano e o Burruchaga é que vieram. É que Bilardo tinha proibido os jogadores mais recuados de irem festejar os golos, para não se cansarem. Mas desta vez era preciso, eu precisava que eles viessem…
Eu não queria nem olhar para trás, com medo que anulassem o golo. Quando Checho chegou ao pé de mim, perguntou-me:
— Marcaste com a mão, não foi? Marcaste com a mão?
— E eu respondi-lhe:
— Cala a boca e continua a festejar.
De seguida, olhei para a bancada. Sabia perfeitamente o lugar onde estavam sentados o meu pai e Coco. Fiz-lhes um gesto com o punho cerrado e eles responderam-me cerrando o punho, também.
Ainda continuava com medo que anulassem o golo, mas não o anularam.
Desse golo com a mão não me arrependo, de todo. Não me arrependo! Com todo o respeito que me merecem os adeptos, os jogadores, os dirigentes, não me arrependo nem um bocadinho. Porque eu cresci com isso, porque em Fiorito eu fazia isso permanentemente. E acabei por fazer o mesmo diante de 100 mil pessoas que nem se aperceberam… Porque toda a gente ficou a gritar golo. E, se gritaram, é porque não tinham qualquer dúvida. Por isso, como podemos atribuir a culpa ao coitado do tunisino?
Ganhei um processo a um diário inglês que, mais tarde, escreveu num título “Maradona, o arrependido”, coisa que jamais me passou pela cabeça. Nem aí, imediatamente, nem passados 30 anos… Nem até ao meu último suspiro, antes de morrer. Como respondi a um jornalista inglês, da BBC, um ano depois: “Foi um golo totalmente legítimo, porque o árbitro validou-o. E quem sou eu para duvidar da honestidade do árbitro, certo?” O mesmo disse a Lineker, quando ele esteve em minha casa, em Buenos Aires, para me fazer uma entrevista, também para um canal inglês.
A primeira coisa que me perguntou foi:
— Marcaste com a tua mão ou com a mão de Deus? — E eu respondi-lhe:
— Foi com a minha mão. Mas com isto não quero faltar ao respeito aos adeptos ingleses.
E contei-lhe que tinha marcado outros assim, que fiquei a olhar para ver se o árbitro e os seus assistentes apitavam alguma coisa…
Lineker também reparou — afinal de contas, foi jogador — que os meus companheiros não estavam a ir todos festejar comigo e perguntou-me por isso. E contei-lhe que me fartei de os chamar, para me virem abraçar, que assim ninguém percebia.
Recordo-me de que me disse que uma jogada assim, para os ingleses, era simplesmente batota e que, em Inglaterra, quem fizesse ficava rotulado como batoteiro. E eu disse-lhe que, para mim, era esperteza e quem o fazia era esperto.
O diálogo foi lindo, falámos de futebolista para futebolista. Teve lugar no pátio da casa dos meus pais, em Villa Devoto.
— Porque disseste aquilo da “mão de Deus"? — perguntou também.
— Porque Deus nos deu a mão naquele momento. Era muito difícil que aquela jogada não fosse vista por duas pessoas: nem pelo árbitro nem pelo juiz de linha. Por isso falei na mão de Deus.
— Eu coloco as culpas no árbitro e no assistente, não em ti — disse-me. — E o segundo golo… foi a primeira e a única vez em toda a minha carreira que tive vontade de aplaudir um golo de um adversário…
Quase lhe dei um beijo na boca quando me confessou isso.
— É um golo de sonho. É o golo que todos sonhamos marcar. Todos nós, futebolistas, sonhamos conseguir um dia apontar o melhor golo da história. Sonhamos e imaginamos isso na nossa cabeça… A verdade é que, realmente, para mim, fazer aquele golo foi fantástico. E num Mundial! Incrível!
— E melhor ainda por ter sido à Inglaterra? — provocou-me, qual jornalista de verdade.
E eu respondi-lhe com sinceridade, também.
— Teria sido muito mais complicado fazê-lo contra a Itália, por exemplo, contra o Uruguai ou contra o Brasil. Foi muito mais fácil contra vocês, porque o jogador inglês é muito mais nobre e honesto em campo.
Ele quis saber mais coisas, para além dos golos.
— Muita gente diz que ganhaste esse Mundial sozinho, que nem sequer tinham uma equipa muito boa. O que pensas disso?
— Tínhamos uma grande equipa. Uma bela equipa, que foi crescendo com os jogos, graças à inteligência dos jogadores e, sim… ficou muito melhor com a minha presença, não vou mentir. Reconheço isso.
Mas acrescentei e volto a acrescentar: estou certo de que não ganhei o Mundial sozinho. Sem a ajuda da equipa, podia ter ganho o jogo contra a Inglaterra, talvez, mas não teria ganho todos os que ganhámos.
Voltou a perguntar-me se não me sentia mesmo mal por ter marcado aquele golo com a mão e eu disse-lhe que era um jogo, que se o árbitro não tinha percebido, isso era parte do jogo. E Lineker conformou-se, não disse absolutamente mais nada. Ou disse: “São coisas do futebol.” Enorme, o Lineker. Acabamos sempre a falar assim quando nos vemos.
Shilton, esse sim, ficou e vai ficar para sempre com raiva de mim. Disse: “Não vou convidar Maradona para o meu jogo de despedida.” Também, quem é que quer ir ao jogo de despedida de um guarda-redes? E de Shilton?! Shilton, a quem se partiram os amortecedores? Já viram como ele anda? É a fingir, querem ver. Tem de mudar os amortecedores.