The good wives”: como a pandemia empurra silenciosamente as mulheres de volta aos papéis tradicionais

No inicio de 2020, o mundo foi assolado por uma crise de dimensões ainda por apurar, mas certamente com impacto nas questões de género e na família. De acordo com a feminista alemã Alice Schwarzer, as mulheres são as verdadeiras perdedoras nesta crise.

O século XX foi um período de revoluções e de interrogações sobre a condição feminina: “O século XX foi, na verdade, o século da afirmação da ideia de independência dos filhos em relação à vontade dos pais, do valor da escolha livre e do consentimento como pretexto para a conjugalidade (...).” [1]

Talcot Parson, ilustre sociólogo com visão sistémica que contribuiu muito para entender estas dinâmicas na sociedade, na família, conjugalidade e no indivíduo, identifica papéis distintos que podem explicar assimetrias sociais [2]:

  • Função Instrumental atribuída ao homem, a procura do sustento e melhoria social da família, que implica mobilidade, disponibilidade para assumir compromissos, correr riscos e detetar oportunidades;
  • Função expressiva atribuída à mulher na promoção de segurança e tranquilidade no domicílio, disponibilidade para o papel reprodutivo da família e fomentar cuidados e educação às crias e ao parceiro quando este regressa dos seus exercícios instrumentais.

A Segunda Guerra Mundial, durante a qual as mulheres afirmaram-se com capacidade laboral e organizativa assumindo o papel dos homens ausentes no combate, abriu brechas na aceitação incondicional dos papeis tradicionais e abriu caminho para a mudança. A crise instalou-se. Para manter o paradigma anterior, nos anos 50 houve campanhas de marketing na promoção da “mulher ideal” de volta às lidas da casa e do seu lugar na sociedade como sendo o status quo da criação: “The Good Wife’s Guide”, publicado em 1955 pela revista Housekeeping Monthly, é disso exemplo; sob o prisma do leitor atual só pode ser considerado risível, mas não podemos esquecer que isto foi ainda transmitido na educação das nossas mães e na nossa. ”Não se nasce mulher, passa-se a sê-lo”, segundo Beauvoir, e a assimetria mantem-se.

A minha geração é confrontada pelo diálogo com as nossas avós, e que as nossas mães tentaram reverter, sendo elas próprias reféns da complexidade desta grande narrativa social.

Tão pouco convence a imagem que o feminismo tem nas mentalidades dos jovens hoje em dia: “Se ser feminista implica, no discurso tradicional, ser uma mulher mal amada, desinteressante do ponto de vista sexual, com problemas de relacionamento interpessoal ou lésbica, as mulheres podem optar por ser ‘verdadeiras’ mulheres, afastando-se assim deste estereótipo limitativo. Assim, a frase ‘Eu não sou feminista, mas...’ representa o facto de muitas mulheres pretenderem distanciar-se dos estereótipos veiculados pela caricaturização do feminismo veiculada pela ideologia tradicional, aceitando, no entanto, a existência de alguns problemas. No entanto, é importante perceber que estas posturas inviabilizam por completo qualquer movimento colectivo de pressão.” [3] Ou seja, não reconhecem no feminismo um movimento pertinente na defesa dos seus interesses; vêem-se confrontados com conceitos de emancipação e demandas de conciliação entre família e trabalho com base na igualdade entre homem e mulher, que frequentemente fazem parte do seu diário sob forma anedótica e antiquada, quando, na realidade, nas suas famílias de origem, nem chegaram alguma vez a ser referência.

Esta falta de clarificação e consolidação do discurso feminista, incluindo a igualdade na distribuição dos papéis entre os casais ao longo das décadas, reforçou o backlash em relação aos direitos alcançados durante os períodos mais reivindicativos de ativismo feminino desde os finais dos sec. XIX.

No inicio de 2020, o mundo foi assolado por uma crise de dimensões ainda por apurar, mas certamente com impacto nas questões de género e na família. As mulheres viram-se forçadas a voltar a assumir a casa como seu território natural assumindo os trabalhos domésticos e o acompanhamento dos filhos como prioridade. Surge um novo conceito chamado de retradicionalização, que chama de volta antigos padrões de funcionamento conjugal e parental. De acordo com a feminista alemã Alice Schwarzer, as mulheres são as verdadeiras perdedoras nesta crise. [4] Segundo Schwarzer, elas não são claras no pedido da partilha do trabalho doméstico, com o receio de deixarem de ser amadas pelo parceiro se propuserem tal tarefa. [5] Os conflitos em torno dos papeis podem estender-se à violência doméstica e situações de rutura, que tem aumentado durante a pandemia. O sentimento de falhanço como mulher, mãe e parceira é reforçado através da maior pressão e stress provocado pelas novas rotinas impostas pela pandemia.

Segundo o Eurostat, a disparidade salarial global entre homens e mulheres em Portugal é de 26,1% e na UE é de 39,6% [6]. Com a pandemia e o confinamento – e, consequentemente, as novas formas de ensino para os filhos em formato digital, que necessitam de acompanhamento parental – impôs-se uma reorganização familiar. Este sistema e a presença contínua de crianças em casa passou a exigir um acompanhamento constante por parte dos progenitores. Com a opção de um dos progenitores ficar em casa há a forte probabilidade de a tarefa recair sobre quem recebe um salário inferior: as estatísticas indicam que, na generalidade dos casos, essa pessoa será a mulher. O trabalho remoto que recai maioritariamente sobre as mulheres torna-se assim um “presente envenenado”, não somente como sobrecarga de trabalho doméstico e de apoio à família, mas também em termos de progressão de carreira numa sociedade com territórios de tomada de decisão que privilegiam tradicionalmente os homens.

Num país com tão grande disparidade salarial entre homens e mulheres, e onde parece longe a igualdade de género, é crucial que sejam criadas mais creches com horários flexíveis. Na minha opinião dever-se-ia propor políticas que facilitem o acesso a creches e incentivar a sua implementação nas empresas e adotar modelos mais flexíveis do tipo “Mais Pessoas – Menos Trabalho”, pois o forte aumento da produtividade gerou um grande desequilíbrio nos mercados de trabalho. Uma redução dos horários laborais de cada indivíduo, homem e mulher, absorveria muito do desemprego estrutural que foi provocado pela pandemia e disponibilizaria uma partilha mais igualitária do tempo disponível para a família.

A covid-19 vai deixar um impacto de destruição e devastação a nível de saúde e a nível socio-económico, mas não só, e tem de ser atendido em todas as suas vertentes. Os efeitos provocados ainda estão por contabilizar.

Existe o risco que se alie ao backlash e se torne num fenómeno facilitador da retradicionalização. O discurso anti-feminista fragiliza a capacidade de resposta e pode desvalorizar os direitos para os quais tantas mulheres lutaram há mais de um século. Convido à leitura de “The Good Wife’s Guide” para relembrar. Ainda estamos a tempo.

[1] Torres, Anália (2001), Sociologia do Casamento, Oeiras, Editora Celta, p.12
[2] Talcot Parsons citado por Torres, Anália (2001), Sociologia do Casamento, Oeiras, Editora Celta, p.42
[3]  Nogueira, Conceição (2001), Um novo olhar sobre as relações sociais de género: Feminismo e perpectivas criticas na psicologia, Braga, Fundação Calouste Gulbenkian, p.9
[4]  Schwarzer, Alice, "Retraditionalisierung": Alice Schwarzer bezeichnet Frauen als “große Verliererinnen” der Corona-Pandemie, Stern , 8 de Outubro 2020, https://www.stern.de/panorama/weltgeschehen/alice-schwarzer--frauen-sind-die--grossen-verliererinnen--der-corona-pandemie-9444758.html, acedido em 22/10/2020
[5] Schwarzer, Alice, "Retraditionalisierung": Alice Schwarzer bezeichnet Frauen als “große Verliererinnen” der Corona-Pandemie, Stern , 8 de Outubro 2020, https://www.stern.de/panorama/weltgeschehen/alice-schwarzer--frauen-sind-die--grossen-verliererinnen--der-corona-pandemie-9444758.html, acedido em 22/10/2020
[6] Eurostat, 2014

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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