Retrato do candidato a patrão da saúde em Portugal
Enquanto Salvador de Mello tem de responder perante os accionistas da Health Cluster, que escolheram o risco de investir no que consideram um negócio com valor de troca, o Governo está obrigado a responder a dez milhões de portugueses que pagam os seus impostos para terem acesso a um bem exclusivamente com valor de uso.
Em recente entrevista (16 de Novembro de 2020, Jornal de Negócios), Salvador de Mello dá a conhecer o seu pensamento relativamente ao que devia consistir o sector da saúde em Portugal. A entrevista é atravessada pelos interesses que tem representado nos últimos anos, nomeadamente no plano das PPP e na criação de uma rede hospitalar em todo o país. É um ponto de vista que questiona o actual SNS, por constituir o mais relevante prestador de cuidados de saúde, cobrindo toda a população, e produzir muitos milhões de consultas e várias centenas de cirurgias anualmente, além de outras actividades ligadas ao ensino e investigação, estando implantado, através dos centros de saúde, em todo o território nacional. E, apesar de algumas assimetrias nos valores dos indicadores de saúde, quando comparados com outros países com sistemas de saúde mais desafogados financeiramente, mesmo assim é um exemplo mundial em alguns aspectos, como o caso da saúde materno-infantil, entre outros.
A resposta que Salvador de Mello apresenta são principalmente duas. Uma é a criação do Health Cluster Portugal, criado em 2107, de que é o patrão, e que reúne todos os estabelecimentos privados da área da saúde. Esta associação, que vai estar presente numa feira da saúde na Alemanha, pretende apresentar-se, com esta iniciativa, como a representante qualificada do sector da saúde português. A presença desta organização numa montra onde vão estar presentes vários países com vários tipos de sistemas de saúde constitui uma tentativa de se apresentar como aquele que está em melhores condições para gerir o sector em Portugal.
Assim se compreende a defesa que faz da presença do Ministério da Economia na tutela da prestação de cuidados de saúde no nosso país. Para este CEO, e considerando as várias ligações que a economia tem com outros bens e serviços, a saúde passaria também a ser uma actividade eminentemente económica, transaccionável como outra qualquer, com um valor de troca, tal como o sector automóvel, por exemplo, e equiparado, também por exemplo, com a Autoeuropa. Nesta lógica, não tardaria que também estivesse cotada na bolsa.
A criação de um instituto de gestão da saúde, por ele defendida, significaria, por outro lado, a evolução de um órgão cuja designação já lhe deve ser querida – Administração Central do Sistema de Saúde – para um instituto, autónomo, independente do Ministério da Saúde, que se ocuparia exclusivamente com os aspectos técnico-clínicos, deixando para o instituto tudo quanto dissesse respeito à gestão: organização, planeamento, funcionamento, contratação e remuneração. Ficaríamos, portanto, com um ministério bicéfalo, em que uma das cabeças comandava e a outra obedecia, uma dava as ordens e a outra executava, uma espécie de monstro, bom para mostrar nas feiras. Neste figurino, caberia à Dra. Marta Temido ser a ministra da covid-19, das gripes, das pneumonias, das doenças oncológicas, das doenças cardiovasculares, da diabetes et al., e ao Eng. Salvador de Mello o patrão das instalações, equipamentos e funcionários. Basicamente, é esta a proposta.
Salvador de Mello reconhece que o sector privado, para sobreviver, está dependente do sector público, naquilo em que este não tem capacidade instalada para dar resposta às necessidades do SNS. Mas sempre vai dizendo que tem capacidade de aumentar a oferta em qualquer valência. E embora nunca se refira à criação de um Sistema de Saúde, em que o SNS era uma espécie de tesouraria do Health Cluster, é este propósito que está sempre presente nas suas declarações, veja-se a defesa que faz da criação de um instituto de gestão da saúde. Seria esta figura a intermediária da fusão do SNS com o sistema privado, aquela que progressivamente ia passando os activos mais importantes da actividade pública para o sector privado, acabando o SNS a fazer a figura de um apagado e vil serviço de saúde, uma recordação do que já foi e ainda é, apesar dos safanões que tem sofrido.
Eis a razão da importância de se começar, apesar da situação sanitária que o país vive e do esforço que está a ser exigido à equipa ministerial, a regulamentar a Lei de Bases da Saúde, e nesta a criação do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde. Adiar esta regulamentação é deixar expandir-se uma terra de ninguém que só serve os interesses privados, que vai preenchendo os espaços deixados vazios a apresentando-se, interna e externamente, como o serviço de saúde português. É que enquanto Salvador de Mello tem de responder perante os accionistas da Health Cluster, que escolheram o risco de investir no que consideram um negócio com valor de troca, o Governo está obrigado a responder a dez milhões de portugueses que pagam os seus impostos para terem acesso a um bem exclusivamente com valor de uso.