A hora da democracia inclusiva
Para vencer o obscurantismo, o império da mentira e do niilismo, é necessário que as democracias liberais sejam mais inclusivas.
“Proteger a nossa democracia exige luta, exige sacrifício.” John Lewis
No seu discurso de vitória, a poderosa vice-presidente eleita Kamala Harris começou por citar o ativista dos direitos cívicos John Lewis e lembrou as mulheres que “tanto lutaram e se sacrificaram por igualdade, liberdade e justiça para todos (...)”, em síntese, por uma democracia inclusiva.
A luta para defender a democracia começou no dia seguinte à tomada de posse de Trump, na extraordinária Marcha das Mulheres. Este poderoso movimento cívico manteve-se mobilizado nos quatro anos que se seguiram, lutando não só pelos seus direitos, mas pela inclusão de todos, incluindo os migrantes, na sociedade do “bem-estar” — “construam pontes, não muros”, era a palavra de ordem.
Trump foi derrotado pela força da sociedade civil americana, dos movimentos sociais — desde a Marcha das Mulheres ao Black Lives Matter —, pela mobilização de milhares de ativistas, pelo empenho dos media de referência na defesa da verdade, dos cientistas na luta contra o obscurantismo e pela resistência dos servidores públicos.
A unidade do centro e da esquerda à volta da candidatura Biden é um exemplo para países, como o Brasil, onde a extrema-direita está ainda no poder, ou, como tem acontecido na Europa, onde tenta influenciar o poder, tornando indispensáveis os seus votos para uma direita pronta ao compromisso (veja-se o que se passou nos Açores).
A esquerda sozinha não teria vencido estas eleições, como também não teria o centro. O programa progressista de Biden-Harris de corte com a política reacionária e neoliberal de Trump, para enfrentar a desigualdade económica, cultural e geográfica – como dobrar o salário mínimo/hora de sete para 15 dólares e atingir a neutralidade carbónica em 2050, como a UE – foi sufragado por mais de 75 milhões de eleitores. Para aprovar o seu plano económico verde de reconstrução no valor de dois triliões de dólares, Biden precisará do apoio do Senado. O que só estará assegurado se os democratas ganharem os dois lugares que falta eleger na Geórgia.
Os cínicos de profissão e os antiamericanos por tradição procuram minimizar a vitória de Biden-Harris com a convicção de que os Estados Unidos estão condenados ao neoliberalismo de Reagan. Porém, existe outra hipótese, a de que os desafios façam o homem e que Biden, perante a gravidade da crise, fique para a História como um novo Roosevelt, de quem diz inspirar-se.
O sucesso da nova Administração é o estímulo necessário para reverter o processo de autocratização, a “força do exemplo” que Salazar temia (e que explica o seu antiamericanismo), quando, nos anos 30, o New Deal de Roosevelt transformou a América na democracia que “deu certo” ao encontrar a resposta inclusiva para a maior depressão económica do século XX.
Ao fazerem do combate ao racismo uma prioridade, ao proporem um modelo multicultural assente numa laicidade tolerante, estarão também a apontar o caminho para vencer as correntes identitárias que fazem do elogio da supremacia civilizacional um instrumento de conquista do poder.
Biden anunciou uma cimeira das democracias, propósito que causa inquietude às ditaduras e aos líderes da extrema-direita e aos que temem que a cimeira seja um instrumento para uma nova bipolaridade.
Aceitar que os Estados Unidos já não são uma potência hegemónica não é fácil para muitos, incluindo no Partido Democrata, mas da mesma maneira que o America First de Trump fracassou, e uma vez que ninguém quer regressar à tragédia das “guerras democráticas de Bush”, uma tentativa de regresso à hegemonia benigna dos anos 1990 está igualmente condenada ao fracasso.
O combate à pandemia e ao aquecimento global são desafios que a América não pode resolver sozinha, pelo que que regressará à OMS e ao Acordo de Paris para limitar o aquecimento global, prioridades de Biden-Harris que prometem promover um multilateralismo eficaz, porque inclusivo, o que impõe aceitar o novo peso da China e da Índia, ou seja, um mundo pós-ocidental.
No Médio Oriente, o propósito de regresso ao acordo nuclear com o Irão indicia o fim do compadrio de Trump com as ditaduras da região, unidas à volta da Arábia Saudita.
Contrariar a vaga autocrática não depende apena dos americanos. A União Europeia tem de ouvir as vozes que vêm de lá, em particular do movimento antirracista, abandonando as políticas anti-imigração, aceitando a diversidade cultural e sancionando os Estados que violam o estado de direito. Ora, surpreendentemente, a União, por proposta francesa, prepara-se para tomar medidas restritivas que discriminam as comunidades muçulmanas, em nome da obrigação de integração.
A luta para reverter a vaga autocrática teve uma primeira grande vitória, mas o caminho ainda é longo e se depende, em boa medida, do sucesso da Administração Biden, depende ainda, em maior medida, da luta e dos sacrifícios de muitos pelo mundo inteiro.
Para vencer o obscurantismo, o império da mentira e do niilismo, é necessário que as democracias liberais sejam mais inclusivas, vencendo as graves fracturas que a economia neoliberal e a arrogância das suas elites criam, mas também mais inclusivas do ponto de vista internacional, aceitando que o tempo da hegemonia ocidental terminou.