Sobre corrupção judicial
Não podemos ter uma moral dupla selectiva. Se a corrupção é inaceitável na política e nos outros sectores da sociedade, na justiça é inaceitável a dobrar.
Numa dimensão ética, mais ampla que a penal, a corrupção judicial pode definir-se como a acção ou omissão de um juiz, violadora de deveres legais ou deontológicos, passível de influenciar o resultado do processo, para obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, de natureza económica, profissional ou moral.
Os instrumentos conhecidos de avaliação comparativa da corrupção judicial a nível global não analisam a dimensão do fenómeno pelo número de investigações ou condenações, mas sim pela percepção do público, influenciada pelas experiências pessoais ou de terceiros e relatadas pela comunicação social. No “Relatório Global sobre Corrupção de 2007: corrupção e sistemas judiciais”, da organização Transparência Internacional, que analisou 163 países, verificou-se que apenas 44 obtiveram nota positiva nos indicadores de corrupção: 21 na Europa, 16 na Ásia e Oceânia, 5 na América e 2 em África. No índice de 2019, Portugal situou-se no 30.º lugar em 198 países.
O documento “Iniciativa de Integridade Jurídica Internacional, Sistemas Judiciais e Corrupção”, da International Bar Association e do Basel Institute of Governance, de 2016, assinalou que a percentagem de pessoas entrevistadas que respondeu não ter tido, nem conhecer quem tivesse tido, qualquer experiência directa de corrupção judicial foi em Portugal de 92%, o que nos colocou no 6.º lugar dos países abrangidos no estudo, a par da Suécia, Alemanha e Dinamarca.
No “Justice Scoreboard”, de 2020, que compara os sistemas judiciais da União Europeia, no item que mede a percepção pública sobre a independência do poder judicial, indirectamente relevante para a avaliação da existência de corrupção, Portugal obteve nota negativa, ficando colocado em 21.º lugar entre 27 países. O que nos dizem estes dados? Duas coisas: que, embora com variações geográficas e culturais, a percepção de que os sistemas judiciais são corruptos é um problema global e que o nosso país aparece colocado acima da média no mundo mas pior na Europa.
O facto de um sistema ser percebido como altamente corrupto não significa que o seja. A avaliação pode sofrer distorções e não ter adesão à realidade. Conhecendo a nossa justiça e os nossos juízes, estou firmemente convencido que o fenómeno poderá ter uma expressão meramente residual. Mas isso não nos descansa. Não podemos ter uma moral dupla selectiva. Se a corrupção é inaceitável na política e nos outros sectores da sociedade, na justiça é inaceitável a dobrar. É que uma percepção pública negativa, mesmo que sobreavaliada por um caso isolado, causa, só por si, um dano grave no valor da confiança, que é vital na justiça.
Há hoje uma reflexão, a nível global, sobre a urgência de tornar os mecanismos de prevenção e combate à corrupção no judiciário mais robustos. Ela nasce da consciência de que o fenómeno mina os alicerces mais fundamentais do Estado de direito e abre a porta a regimes populistas iliberais, inimigos da democracia, como se viu na Hungria e Polónia. Nesse trabalho, de construir modelos de organização mais fortes, merecem destaque, por exemplo, a Rede Global de Integridade Judicial, no âmbito das Nações Unidas, e o Grupo de Estados Contra a Corrupção e o Conselho Consultivo dos Juízes Europeus, no âmbito do Conselho da Europa.
Nenhum sistema pode desalinhar-se dessas preocupações. Em Novembro de 2018, as associações representativas dos juízes dos 8 países de língua portuguesa aprovaram uma declaração em que reconheceram que a corrupção, aceite ou permitida por juízes, é o maior flagelo para a função judicial, que ataca directamente os princípios gerais da independência, imparcialidade e integridade e prejudica, de forma irreversível, a confiança dos cidadãos na justiça, e assumiram o compromisso de, em conjunto, contribuírem para que nos respectivos países se estabeleçam programas gerais de sensibilização, prevenção e combate ao gravíssimo problema da corrupção judicial.
O desenho desses programas tem de preservar as garantias de independência dos tribunais e por isso deve partir das próprias instituições da justiça. Mas eles não podem ter apenas uma finalidade instrumental de minimizar os impactos da crítica pública. Isso é pouco. Têm de ser efectivos na sua finalidade: se há corrupção, deve ser combatida e expurgada.