As cidades continuam a ser pensadas para 40% dos seus cidadãos
Associação Salvador e Instituto das Cidades e Vilas com Mobilidade vão promover inquérito para tentar obter uma radiografia do país sobre a forma como os municípios promovem uma mobilidade inclusiva.
Não vale dizer que a nossa rua é linda e tem um passeio largo se as irregularidades da calçada à portuguesa são impróprias para uma cadeira de rodas ou um carrinho de bebé, nem gabar rampas nas passadeiras que, afinal, são tão inclinadas que podem fazer tombar ou torcer um pé a alguém sem qualquer deficiência que ali passe ou aos mais idosos. A Associação Salvador e o Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade (ICVM) vão lançar nas próximas semanas um inquérito nacional para perceber quão comprometidos estão os municípios portugueses com a mobilidade inclusiva. Os resultados serão apresentados a 3 de Dezembro, dia Internacional da Pessoa com Deficiência.
A pandemia tornou ainda mais evidentes as questões da desigualdade no acesso ao espaço público, assegura Salvador Mendes, tetraplégico, fundador de uma associação que, desde 2003, tenta pôr na agenda social, política e mediática as questões da inclusão de pessoas com deficiência, incluindo o acesso universal ao espaço urbano e aos edifícios públicos e privados. Portugal tem uma legislação que consagra este direito e normas técnicas para a realização de projectos e obras, vertidas para um guia coordenado por Paula Teles, engenheira do planeamento e presidente da associação ICVM, mas a verdade é que, quase década e meia após a publicação do decreto 163/2006, a sensação, geral, é que há um enorme caminho – e com vários obstáculos – a percorrer, até termos espaços urbanos que não excluem ninguém.
Cidades para os 40% mais fortes
A premissa da verdadeira “democracia urbana” é simples: um espaço pensado e executado para ser acessível a deficientes motores será acessível a crianças, pais com carrinhos de bebés, pessoas com mobilidade temporariamente reduzida por algum acidente ou aos mais velhos que já representam mais de 25% da população (e a todos os outros, claro). Paula Teles tem os números de cor e numa sessão online com Salvador Mendes de Almeida, para assinalar a Semana Europeia da Mobilidade, estima que 60% da população esteja enquadrada numa qualquer categoria destas. Ou seja, passados todos estes anos “ainda há quem planeie e projecte cidades para os outros 40%”, alertou.
O inquérito que nas próximas semanas vai chegar a todos os municípios procura perceber quanto investem estes, em recursos humanos, financeiros, em formação do pessoal técnico na correcção dos problemas de acessibilidade concelhios. Questiona-os também sobre as formas de avaliação e fiscalização do trabalho realizado e sobre o seu empenho na divulgação destas questões junto da comunidade. Os dados serão tratados ao longo do mês de Novembro e divulgados publicamente em Dezembro. As duas associações esperam que a radiografia que conseguirem fazer ajude a secretária de Estado da Inclusão, à qual reconhecem empenho na correcção deste factor de desigualdade social.
Governo criou estrutura de missão
Salvador Mendes de Almeida faz parte do conselho consultivo que apoia a Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades, criada por resolução do Conselho de Ministros no início deste ano para dar um novo impulso a um tema que, segundo Paula Teles, teve muita atenção política, e financiamento, na primeira década deste século mas que, com a intervenção da troika, perdeu espaço político. E que, sobretudo, se viu privado de instrumentos financeiros robustos que apoiem, desde logo, um planeamento urbano inclusivo. Um dos objectivos da comissão passa por melhorar a formação dos técnicos envolvidos, ao nível local e da administração central, bem como a disseminação das boas práticas entre agentes públicos e privados.
“Executar obras com projectos que tenham em conta estas premissas não custa mais dinheiro. O que custa são as intervenções avulsas, de reparação de erros cometidos ao longo do tempo”, assinalou esta projectista. “De nada vale avançar com um plano para colocar rampas em todas as passadeiras de uma vila ou cidade se os passeios continuam a não ser acessíveis a todos, seja por por serem estreitos, terem mau piso ou estarem pejados de obstáculos”, acrescentou, como exemplo da necessidade de uma visão integrada.
A acção, defenderam ambos, tem de ser sustentada num corpo técnico com formação e sensibilidade para o tema e num esforço contínuo de avaliação das intervenções, públicas e privadas, sob pena de se desperdiçarem recursos em obras que não respondem às necessidades. “Não se pode continuar a fazer passeios com cubos de cinco por cinco centímetros, que são muito bonitos mas se tornam irregulares, enquanto as vias de circulação automóvel são asfaltadas. Temos de dar aos peões condições de circulação confortáveis e seguras, recorrendo até a materiais mais amigos do ambiente”, insistiu Paula Teles.