Vicente Jorge Silva: o jornalista com uma curiosidade sem fim

Morreu “um gigante da imprensa portuguesa”, nas palavras de António Guterres. Tinha “visão, rasgo e audácia”, resume o amigo Mega Ferreira. Era raro, generoso, divertido, curioso, criativo. Vicente Jorge Silva, fundador do PÚBLICO, sonhava com cinema, mas foi sempre, acima de tudo, e profundamente, jornalista.

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Jorge Barbosa

Tinha uma maneira de falar inconfundível. Quando estava entusiasmado, fazia caretas, gesticulava, abria muito os olhos, prolongava exageradamente algumas palavras, para, logo de seguida, desfazer o teatro num sorriso doce de menino traquinas apanhado em flagrante. Atravessava assim a redacção do PÚBLICO, parando para elogiar alguma coisa, criticar outra, lançar uma ideia que acabara de ter e que se sentia impaciente por ver posta em prática, discutir um assunto que o estava a fascinar. E não havia dúvidas: o Vicente tinha chegado.

Vicente Jorge Silva, jornalista – fez muitas outras coisas, do cinema à política (foi deputado pelo Partido Socialista), mas foi sempre, em primeiro lugar, acima de tudo, e profundamente, jornalista –, director do Comércio do Funchal, chefe de redacção e director-adjunto do Expresso e criador da Revista deste semanário, fundador do PÚBLICO, morreu na madrugada desta terça-feira aos 74 anos, em Lisboa, vítima do cancro que combatia há já algum tempo. O corpo encontra-se nas Capelas Exequiais da Basílica da Estrela, em Lisboa, onde haverá às 15h uma pequena cerimónia para a família. O cortejo fúnebre seguirá às 16h para o crematório do Cemitério dos Olivais.

Para António Guterres – actualmente secretário-geral das Nações Unidas, mas que era líder do Partido Socialista no início da fase política de Vicente Jorge Silva –, “foi um gigante da imprensa portuguesa, um símbolo inigualável de independência, rigor e coragem cívica”. Portugal “perdeu um notável jornalista e um cidadão exemplar”, disse Guterres, numa breve declaração enviada por escrito ao PÚBLICO.

Vicente revolucionou, por três vezes, a forma como se fazia jornalismo em Portugal – primeiro, em 1966, transformando um pequeno jornal regional numa referência na resistência à ditadura de Salazar; mais tarde, criando uma revista cosmopolita e aberta ao mundo como não existia outra no país; e, por fim, lançando, em 1990, um diário que, tendo como base uma corajosa parceria com um dos maiores empresários do país, Belmiro de Azevedo, nasceu com uma ambição e uma vontade de fazer diferente que marcaram de muitas formas a vida jornalística portuguesa nesse início da década de 90.

O antigo jornalista, escritor e gestor cultural António Mega Ferreira, amigo dele desde a década de 70, não tem qualquer hesitação: “O Vicente tinha visão, rasgo e audácia, que são coisas que não existem praticamente no jornalismo em Portugal. Foi, sem dúvida, o mais importante jornalista português da minha geração.”

O escritor Rui Cardoso Martins, que fez parte do grupo de estagiários da equipa fundadora do PÚBLICO, recorda-se muito bem dessas entradas do Vicente na redacção. “Não havia tabiques, nem físicos nem ideológicos. Ele tinha um gabinete, mas entrava na redacção, aos gritos, de braços no ar, a gesticular como se apanhasse gafanhotos, gritando uma frase conhecida do [jornalista brasileiro] Nelson Rodrigues: ‘Isto é um óbvio ululante!’. Quando estava uma coisa mal escrita, ele vinha, mas também vinha quando fazíamos uma coisa bem-feita e dava-nos os parabéns directamente.”

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Era, sublinha Rui, “uma forma de trabalhar completamente diferente da forma engravatada que também existia, e imagino que ainda exista, no jornalismo”. No livro Vicente Jorge Silva – conversas com Isabel Lucas (Temas e Debates, 1993), o próprio fala dessa relação com as redacções: “A atmosfera de uma redacção […] provoca uma adrenalina criativa, estimula um espírito democrático que é essencial ao jornalismo”.

E mais à frente, a propósito da “grande vivacidade” na redacção do PÚBLICO, confidencia: “Já disse que talvez pecasse por ser excessivamente democrático, mas não sabia funcionar de outra maneira. Eu sabia que não devia haver paredes, que o jornal devia ser completamente aberto para fora e tinha de ser também aberto para dentro. Penso que a autoridade que nós podemos exercer junto dos outros provém de uma abertura constante em relação a eles.”

É talvez por isso que, quando atende o telefone, Miguel Esteves Cardoso, que trabalhou com Vicente na Revista do Expresso, exclama: “Não reconheço o Vicente nessas descrições [dos obituários que surgiram], parece um manga-de-alpaca, fez isto, fez aquilo, foi muito importante para a cultura, quando ele era um artista, e ao mesmo tempo uma espécie de criança gigante, que tinha fúrias e birras e amores. Nunca conheci uma pessoa tão generosa como ele.”

Recorda o impacto do primeiro encontro. “Nunca ninguém me tinha dito na cara o que achava de mim. Ele disse-me ‘ó Miguel, tu és um cabotino!’ e eu não sabia o que queria dizer cabotino, tive de ir ver ao dicionário. Depois era uma piada recorrente quando me via, ‘continuas cada vez mais cabotino”, e dizia ‘que ideia tão tontaça’, mas deixava fazer e dava-nos força para a fazer. Apoiava muito o que era diferente dele. ‘Suponho que haja pessoas que gostam dessa merda’, dizia ele. Era muito democrático nisso.” E reconhecia o valor das modas e a obrigação de o jornalismo olhar para elas também: “Era o ‘já não há pachorra para isso, dá-me coisas novas’.”

O crítico de arte Alexandre Melo, que pertenceu ao grupo da Revista do Expresso – com Eduardo Prado Coelho, Clara Ferreira Alves, Augusto M. Seabra, entre outros – explica que em torno desta publicação, dinamizada por Vicente, “se criou uma dinâmica de compromisso com a inovação, de atenção à actualidade, às novidades e à possibilidade de novidades, ao contexto artístico e cultural, que era única na altura”.

A revista francesa Actuel era uma referência para Vicente, que citava frequentemente um espaço dessa revista intitulado “nouveau et intéressant”, expressão que ele usava para caracterizar um grupo de pessoas do qual Alexandre fazia parte. “A Revista veio mudar completamente o jornalismo português”, reforça Augusto M. Seabra. “Tinha um pendor cultural e um tratamento das coisas a fundo que não havia em mais nenhum sítio.”

Democrático é uma palavra que surge com frequência nos depoimentos de todos os que trabalharam com Vicente. Ele tinha noção disso. Nas entrevistas que deu ao longo da vida – e sobretudo nos três anos de longas conversas com Isabel Lucas –, recusava geralmente o rótulo de colérico, e preferia descrever-se como “temperamental”, situava-se politicamente na área da “social-democracia à maneira nórdica”, declarando-se admirador do antigo primeiro-ministro sueco Olof Palme e do antigo chanceler alemão Willy Brandt, e sublinhava a sua abertura à pluralidade de opiniões, lembrando como a sua única longa-metragem, Porto Santo, recebeu uma bola preta no seu próprio jornal, o PÚBLICO.

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Francisco Teixeira da Mota, cronista e advogado do PÚBLICO, lembra como Vicente foi “importantíssimo” por ter sido o protagonista do primeiro processo em que Portugal foi condenado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violação da liberdade de expressão

Aberto ao mundo, sem qualquer dúvida. “Uma das qualidades raras que o Vicente tinha como jornalista era a sua absoluta recusa em compartimentar a realidade dentro das secções estanques e a sua atenção às novas forças e tendências sociais”, diz José Vítor Malheiros, que trabalhou na Revista do Expresso e, mais tarde, fez parte do núcleo de fundadores do PÚBLICO. “A coisa mais justa que posso dizer do Vicente é que profissionalmente lhe devo tudo.”

Henrique Cayatte, que fez o grafismo original do PÚBLICO – e a preocupação com a imagem gráfica das publicações e com a fotografia foram sempre marcas de Vicente Jorge Silva –, declara a sua “dívida de gratidão eterna” para com ele e não esquece os “dias irrepetíveis de convívio e de trabalho”, com um homem “livre e corajoso”, “de uma qualidade rara”.

Torrencial, muitas vezes. Ou “crepitante de vida”, na expressão de Mega Ferreira, que com ele escreveu o argumento para uma das curtas-metragens realizadas por Vicente, A Bicicleta. “Não recuava perante nada, não tinha filtros à partida, mesmo no comportamento social. Era uma personagem excessiva, com uma capacidade de liderança extraordinária.”

Feliz, quase sempre – se falarmos daquela felicidade que tem a ver apenas com o prazer de estar vivo, mesmo quando se está zangado, irritado, indignado ou, eventualmente, triste. “Trabalhar com o Vicente era tudo menos um emprego”, diz ainda José Vítor Malheiros. “Se tivesse de usar uma única palavra para representar esse período teria de ser ‘paixão’. Era excitante trabalhar com o Vicente, era divertido, era desafiante e (perdoe-se a imodéstia) com ele conseguimos fazer coisas admiráveis.”

Por cumprir, em grande parte, ficou o cinema. “O cinema era um grande sonho”, reconhecia numa entrevista em 2016 ao programa Uma Vida, Uma História, da RTP Madeira, a ilha onde nasceu, na cidade do Funchal, a 8 de Novembro de 1945, poucos meses depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas o jornalismo esteve na sua vida praticamente desde sempre.

Se, com uns 12 anos, já era companhia habitual do pai nas salas de cinema do Funchal – o Cine Parque, o Cine Jardim e o Teatro Municipal – e se, um pouco mais tarde, já se lançava nas primeiras experiências de curtas-metragens que exibia no estúdio de fotografia da família, o Atelier Vicentes (e que, na maior parte, se perderam), tudo isso era acompanhado pelo devorar dos artigos da revista Imagem e das conversas com o redactor-chefe desta, Edgar Gonsalves Preto.

Daí até começar, ele próprio, a escrever crítica de cinema, foi um pequeno salto. Tinha uma página chamada Foco no Jornal da Madeira, mas, conta na mesma entrevista, tudo acabou em parte devido à intervenção do cónego Fulgêncio, “figura funchalense”, que se indignou com o facto de, ao escrever sobre um filme sueco, o jovem Vicente fazer a “defesa do amor livre”.

Sempre demasiado inquieto, não tinha propriamente ainda consciência política mas, naturalmente, questionava a autoridade: “Achava que a vida do liceu era insuportável. Creio que tinha muito a ver com o clima sufocante do salazarismo, a atmosfera de hipocrisia e aparências que se respirava.” Amigo desde sempre, o também madeirense José Maria Amador recorda-o já nessa altura como “muito criativo e muito rebelde”, mas salienta uma “coerência política que é raro encontrarmos”.

A Madeira estava claramente a tornar-se demasiado pequena para Vicente. Quando um inspector da PIDE se dá ao trabalho de interrogar um jovem de 15 anos pelo seu comportamento desestabilizador na escola – “eu perguntava porquê” –, o pai de Vicente preocupa-se seriamente e decide enviar o filho primeiro para Londres, e depois para Paris.

A surdez com que nascera permitiu-lhe escapar à tropa e, assim, aos 16 anos vê-se em Paris a conviver com a escritora Maria Lamas, “uma mulher extraordinária”, que ele, com o dinheiro que ganhava em trabalhos precários, levava a jantar a um restaurante numa transversal do Boulevard Saint-Michel – uma história que gostava de contar, assim como a do seu fascínio por Sissi, imperatriz da Áustria, que o bisavô fotografara numa passagem pela Madeira.

Regressou à ilha e com 21 anos lançou-se, com um grupo de amigos, na aventura do Comércio do Funchal, tornando-o um espaço de liberdade excepcional no contexto da época. Quando, depois do 25 de Abril, sentiu que esse espaço começava a ser tomado por tendências de esquerda com as quais não se identificava totalmente, percebeu que mais uma vez precisava de deixar a sua ilha e foi para Lisboa, onde começou a trabalhar no Expresso, de Francisco Pinto Balsemão, com Marcelo Rebelo de Sousa.

Foi a custo que deixou o semanário que o tinha acolhido, depois de ter proposto a ideia de um diário a Balsemão (que não quis avançar) e pressionado por Belmiro de Azevedo, que, entretanto, se entusiasmara com a proposta de Vicente.

Histórias, há muitas, que partilhou com Isabel Lucas: das boleias que Mário Soares lhe dava quando ele (que nunca guiou) era repórter do Expresso (e sublinha sempre a sua independência e imparcialidade, mas também a grande simpatia pessoal que tinha por Soares), passando pelos almoços com os líderes partidários quando fundou o PÚBLICO (e vale muito a pena ler a descrição do almoço com Álvaro Cunhal) ou pela atribulada “conspiração”, ainda no Expresso, para criar um jornal diário. E as (literais) dores de cabeça que sofreu quando, por razões técnicas, o PÚBLICO não saiu, como previsto, a 1 de Janeiro de 1990 – o momento mais difícil da sua carreira, confessou.

Apesar de, ao fim de seis anos, ter saído do PÚBLICO por divergências com Belmiro de Azevedo – “senti que ele queria aproveitar o momento para tomar o controlo directo do jornal”, afirma no livro , manifestou sempre grande respeito e estima pelo empresário, elogiando a coragem com que este apostou num projecto jornalístico com uma ambição tão grande como o PÚBLICO e a forma como cumpriu o pacto de não-interferência estabelecido entre os dois.

Por cumprir, para além do cinema, ficaram talvez outras coisas. Vicente confessava várias vezes a saudade que tinha das redacções, que deixou cedo de mais – apesar de ter continuado como cronista, no Diário de Notícias e, depois, de regresso ao PÚBLICO, a convite do então director David Dinis. Em 2017 foi director por um dia do jornal que fundou. Estava visivelmente feliz por voltar a trabalhar no meio de uma equipa com pessoas que conhecia muito bem e outras que estava a conhecer pela primeira vez. “Confesso que matei saudades desses tempos tão estimulantes em que, jornalista ‘no activo’, um dos meus maiores prazeres era desfrutar da criatividade, da imaginação, do engenho e do espírito aberto e democrático que se viviam em tantas e tantas reuniões de redacção. Aprendi muito com isso, tal como voltei a aprender agora — e quando falo em aprendizagem é no sentido literal da palavra, em descobrir coisas, pistas novas, outras maneiras de ver e pensar, mundos diferentes daqueles com que estou mais familiarizado”, escreveu então.

Os projectos jornalísticos que tentou lançar depois da sua passagem (também falhada) pela política, nomeadamente a revista Invista, não vingaram. Raul Vaz, amigo desde que se conheceram numa viagem à Rússia com Mário Soares, em 1987, conta que depois de deixarem de trabalhar juntos continuaram sempre a conversar sobre “a vida, o jornalismo, as irritações” que partilhavam. “Mesmo quando alguém dizia um disparate, ele dizia: ‘Porque não? Vamos a isso’. Os projectos construíam-se nas nossas cabeças e nas nossas conversas. Foi assim que fizemos muitos ‘jornais’. Porque não? A partir daí construía-se qualquer coisa. O Vicente era um criador em movimento, que não se resignava. Acho que ainda vai fazer alguma coisa. Porque não?”.

Assim, simplesmente, porque era possível. Com o Vicente, diz José Vítor Malheiros, “éramos felizes e sabíamos que éramos felizes”. com Isabel Salema

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