Para o Vicente, debruçado a ler e a rir — e a dizer que nos esquecemos do mais importante
As perguntas do Vicente hão-de acompanhar-nos sempre. As respostas vão aparecendo nos jornais que lemos e nos filmes que vemos, acompanhadas agora pela pena de ele já não os poder ler ou ver. Vai ter muitas saudades da vida, o Vicente Jorge Silva. E a vida ainda não sabe as saudades que vai ter dele.
Escrevo sobre o Vicente Jorge Silva cheio de tristeza por ele já não estar vivo porque nunca conheci uma pessoa tão viva como ele.
Lembro-me do que ele me disse sobre uma vez em que ele esteve morto e voltou à vida e tenho uma esperança não muito secreta de que ele repita a brincadeira.
Disse ele da morte que era uma chatice e que ele era o inimigo mortal da chatice.
Vivia para o que estava vivo, para o que era novo, para o que tinha graça, para o que estava na moda.
Ele próprio tinha um feitio clássico e aristocrático, apaixonado pela justiça e pela beleza, tendo consciência da rapidez e da volatilidade das várias modas em todas as artes.
Mas percebia que o momento é que interessa no momento e que o objecto do entusiasmo é importante só porque sem objecto, seja ele qual for, não há entusiasmo — e o entusiasmo é o que distingue a vida vivida daquela que é meramente observada.
O Vicente era um brincalhão, um mimado, um entusiasta, um teimoso, um iconoclasta, um artista: era uma criança.
Agia como se nunca tivesse sido reprimido, como um espírito livre que, não contente com a liberdade que tinha, queria essa mesma liberdade para toda a gente.
Era o contrário de um tirano. Era um libertador. Queria que toda a gente tivesse o que ele tinha. Era implacavelmente generoso. Nunca conheci uma pessoa mais fácil de convencer.
Como era frontal, transparente e sincero, sem qualquer cuidado de não ofender, havia quem o achasse bruto. Não era bruto. Era terno. Queria que fôssemos igualmente directos e corajosos com ele, como ele, como quiséssemos, como achássemos bem.
Eu era um dos “tontaços” que trabalharam com ele, na Revista do Expresso e no guião de um filme — A Casa e o Mar — que ele não chegou a filmar.
Havia muitas pessoas de quem ele gostava mais do que de mim, mas por isso mesmo sou testemunha da atmosfera que ele criou: uma atmosfera onde as artes podiam respirar, fosse qual fosse a sua atitude para com as várias manifestações que podiam ter.
Não era indiferença: era respeito. Embora fizesse questão de se exprimir o mais violentamente possível sobre as tonterías da semana, martelando-nos sobre a vacuidade dos protagonistas da moda, encorajava-nos a procurá-los e defendê-los com a mesma veemência com que ele os atacava.
O Vicente ensinou-me na prática, página por página, que os jornais e as revistas são fervedores que apanham as paixões do momento enquanto elas ainda ardem, que é a coisa mais bonita que podem fazer.
O Vicente ensinou-me na prática, dia após dia, que a obrigação de um jornal é ser interessante, de preferência irresistível. Tem de criar uma apetência imediata de ser lido. Esta frase parece banal, mas cada vez está mais longe de ser aprendida.
Ser inteligente; ser provocador; ser incómodo para os poderes instalados; inovar; despertar curiosidades; ser insaciavelmente desconfiado; ser indomável; ser irrequieto e exigente; ser blasé e volúvel, ser sério e frívolo ao mesmíssimo tempo... nada disto se pode ser sem primeiro ter sido lido.
Ser lido é o maior triunfo — foi esta a lição que o Vicente aplicou. Tudo o que vem depois — discordar, amaldiçoar o tempo que se perdeu a ler aquilo, achar que não podia estar mais mal escrito ou ser mais injusto ou ridículo ou pernicioso — é a festa, é o prazer, é a apoteose.
O Vicente como pessoa era melhor ainda. Era virado para os outros, para nós. Para cada um tinha uma brincadeira, uma maneira de falar, uma atenção só para aquela pessoa.
Aplicava a sua enorme sensibilidade para o bem. Para o bem dele, dos outros e para o Bem com letra grande, gótica. O amor que tinha pelos outros exprimia-se através de uma apaixonada curiosidade, que se irritava por não conseguir resposta: mas porque é que ela fez aquilo?; o que é que leva uma pessoa violeta e azul a ser tão verde e branca? Mas porquê?
As perguntas do Vicente hão-de acompanhar-nos sempre. As respostas vão aparecendo nos jornais que lemos e nos filmes que vemos, acompanhadas agora pela pena de ele já não os poder ler ou ver.
Vai ter muitas saudades da vida, o Vicente Jorge Silva.
E a vida ainda não sabe as saudades que vai ter dele.