As objecções de consciência de Marcelo

É assustador pensar que o nosso Presidente da República decidiu, em menos de um dia, receber os subscritores do manifesto no seu gabinete. Será que a 15 dias das escolas portuguesas abrirem, num clima de incertezas devido à pandemia de covid-19, não haveria algo mais importante a debater?

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Sergio Azenha

Estávamos a meio de Julho quando proliferou na comunicação social o caso de dois alunos que faltaram à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento por um pedido de objecção de consciência dos seus encarregados de educação. Estes mesmos argumentavam que os tópicos da disciplina são da responsabilidade educativa das famílias. Entre eles estão temas como os direitos humanos, a igualdade de género, a educação ambiental, a participação democrática e até a segurança rodoviária

Tendo em conta que a disciplina é obrigatória no currículo escolar para transição de ano lectivo, o Ministério da Educação impôs que os alunos fossem impedidos de avançar de ano. Após essa decisão, os pais dos alunos decidiram recorrer à justiça, tendo o Tribunal de Braga suspendido a decisão de chumbar esses alunos. Tudo parecia ter ficado resolvido até que, no início deste mês, surgiu um manifesto “pela liberdade de educação" assinado por uma centena de personalidades, incluindo o ex-primeiro ministro, Pedro Passos Coelho, e o ex-presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.

Na Lei de Bases da Educação, uma das principais missões destacadas é a promoção do desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva. E são esses os objectivos, também, da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. 

O objectivo do manifesto não é, de certeza absoluta, promover a “liberdade de educação”, mas sim começar uma polémica populista de forma a atacar a escola pública e as bases da nossa democracia. Quem o assina, defende uma educação sem “doutrinação”, mas utiliza o ensino português para começar uma polémica alimentada por informações completamente distorcidas de modo a promover programas ideológicos de uma ala política da direita conservadora. Uma direita sem programa que actualmente apenas consegue cingir na nossa sociedade promovendo o retrocesso desta mesma.

Esta táctica já foi usada noutros países. Bolsonaro, na sua campanha de 2018, utilizou imensas vezes o conceito “ideologia de género” de forma distorcida com o objectivo de gerar pânico e alarmismo na sociedade brasileira. E aqui por Portugal o mesmo está a repetir-se. É assustador pensar que o nosso Presidente da República decidiu, em menos de um dia, receber os subscritores deste manifesto no seu gabinete. Será que a 15 dias das escolas portuguesas abrirem, num clima de incertezas devido à pandemia de covid-19, não haveria algo mais importante a debater? 

Durante a sua campanha presidencial em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa sempre defendeu que um Presidente da República precisa de saber separar as suas posições individuais do sentimento colectivo do país em relação a certos temas legislativos. Mas, aparentemente, esse pensamento foi deixado completamente para trás. Estamos quase a chegar ao fim do seu mandato e entre selfies, abraços, beijinhos e tentativas de virar nadador-salvador, Marcelo sempre conseguiu fugir aos temas fracturantes que permitem a nossa sociedade evoluir. 

Numa época em que a nossa democracia se encontra ameaçada, o silêncio de Marcelo e a recepção destas campanhas populistas em Belém apenas mostram que os supostos “moderados” são os primeiros a ajudar os extremismos à direita a crescer. 

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