“A colonização, em termos de imagens, foi uma ficção”
Ariel de Bigault, cineasta e divulgadora francesa, estreia no IndieLisboa Fantasmas do Império, um documentário sobre o modo como o cinema português olhou para as (ex-)colónias nos últimos cem anos.
Ariel de Bigault é clara: “Não estou a fazer um filme de catedráticos nem para catedráticos.” O que esta documentarista francesa sempre quis com Fantasmas do Império foi explorar “a maneira como o olhar português sobre as colónias foi mudando”. E o que ela viu ao longo de três anos de trabalho tem esta sexta-feira estreia mundial no IndieLisboa (Cinemateca Portuguesa, 19h).
O documentário resulta de um interesse de longa data da cineasta parisiense pela lusofonia e pela miscigenação das culturas ocidental e africana, que Ariel, que fala fluentemente português, ajudou muito a divulgar em França através de reportagens, filmes, séries televisivas e edições de discos. Fantasmas do Império sai do campo da música a que tradicionalmente associamos a sua autora e assume-se como uma obra que se destina a um público menos conhecedor da história do cinema.
A cineasta define-o como um filme que pretende levantar questões sobre temas que estão actualmente no centro das atenções do mundo – no caso, o modo como Portugal foi olhando através do cinema para os países (aqui maioritariamente africanos) que governou como “províncias ultramarinas”, sublinhando como “o colono português não é a mesma coisa que o colono francês ou o colono inglês”.
No centro de Fantasmas do Império está uma escolha de excertos de filmes – 65% das suas quase duas horas, diz ela –, que vão de jornais de actualidades e documentários de visitas de Estado a ficções como Chaimite (1953), de Jorge Brum do Canto, ou Tabu (2012), de Miguel Gomes, passando ainda por Acto dos Feitos da Guiné (1980), de Fernando Matos Silva, A Costa dos Murmúrios (2004), de Margarida Cardoso e Catembe (1965), de Manuel Faria de Almeida.
Ecos e encontros
Tratou-se, segundo a realizadora, de reconhecer “correspondências” entre os filmes, “ecos” que foi descobrindo entre obras tão diferentes como Posto Avançado do Progresso (2015), de Hugo Vieira da Silva, e alguns dos jornais de actualidades mais antigos. “A minha ideia era ver a evolução do olhar ao longo de um século,” diz, “e vemos que [a visão crítica] se formou antes do 25 de Abril”, diz, chamando a atenção para Catembe ou Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras (Lopes Barbosa, 1974), que são já filmes que enfrentam o sistema. Não por acaso, estes dois últimos foram interditados pelo regime salazarista.
A partir de filmes cujos excertos usou, a cineasta promoveu, nas instalações da Cinemateca Portuguesa e do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, encontros que registou em câmara, sobretudo entre cineastas de gerações muito diferentes (Matos Silva, João Botelho, Cardoso, Faria de Almeida, Vieira da Silva ou Ivo Ferreira), em alguns casos “moderados” por dois actores africanos – o são-tomense Ângelo Torres e o angolano Orlando Sérgio.
“Essa era a base da minha proposta de realização, que estava já toda desenhada na primeira versão do projecto,” explica Ariel, esclarecendo que muitas vezes as próprias entrevistas eram rodadas “a quente”, à saída da projecção de um dos filmes de arquivo. “Eles tinham visto os filmes uns dos outros, mas quase todos, à excepção do Fernando [Matos Silva] e do [João] Botelho, só agora descobriram os filmes mais antigos. E muitos deles nunca tinham falado destas questões em diálogo com outros [cineastas].”
Era, por isso, importante para a realizadora acrescentar “olhares diferentes”, o que ajuda a explicar a presença de Torres e Sérgio como “apresentadores” ou “condutores” destas conversas. Mas, Ariel de Bigault é peremptória: “Nunca poderia ter feito este filme só com as entrevistas. Tudo foi construído a partir dos filmes – quando fiz a pesquisa, fui desde logo estabelecendo uma pré-escolha.”
No centro, a sua convicção de que era preciso mostrar como a abordagem que o cinema nacional fez aos territórios que Portugal colonizou se foi alterando com o tempo. “É uma evolução sensível ao longo de todo o filme: mesmo na propaganda o discurso evoluiu muito na forma de filmar, na presença do negro. Não há um monolitismo do pensamento salazarista sobre a colonização, é mais complexo do que isso, e nessa complexidade é que se vai construir a ficção que é o não-racismo português e a convivência pacífica [entre colonizadores e colonizados]. A colonização, em termos de imagens, foi uma ficção.”