O Museu Guggenheim tem agora um plano para combater o racismo de que é acusado
Formação antidiscriminação para os funcionários, recrutamento direccionado para as minorias, parcerias com universidades com uma forte presença afro-americana: chegará para combater o “racismo sistémico” num dos principais museus de Nova Iorque?
Enquanto lidava com os problemas decorrentes de meses de encerramento ditados pela pandemia de covid-19, com um défice de 15 milhões de dólares no topo da lista, o Museu Guggenheim enfrentou também fortes críticas à falta de diversidade no que toca aos seus funcionários, aos curadores convidados e à origem dos artistas representados na colecção, no programa de exposições e nas aquisições com que vai actualizando e expandindo o acervo.
Procurando dar resposta ao coro de vozes que se levantou contra o “racismo entrincheirado” na instituição, o Guggenheim de Nova Iorque apresentou na segunda-feira ao seu staff um programa a dois anos que tem por objectivo criar mecanismos para denunciar actos de discriminação e desenvolver políticas de promoção da diversidade nos mais diferentes níveis de actividade do museu, tanto nos bastidores como na oferta cultural, noticia o diário norte-americano The New York Times.
As novas medidas anunciadas pelo director do museu, Richard Armstrong, incluem, por exemplo, parcerias com instituições de ensino historicamente ligadas à comunidade afro-americana tendo em vista a abertura de novas vagas profissionais, estágios pagos para estudantes cujas origens estão sub-representadas entre os funcionários, e a criação de um cargo de gestão especificamente dedicado ao acompanhamento de todas as iniciativas destinadas a assegurar uma maior diversidade na oferta do Guggenheim, além de uma comissão encarregue de analisar as compras para o acervo e de assegurar que não deixam de fora artistas BIPOC (sigla para “Black, Indigenous and People Of Color”). Formações anti-racismo para os trabalhadores também estão previstas.
O novo programa implica, assim, reajustes nas práticas de recrutamento e contratação do museu, órgãos de decisão mais inclusivos, uma política de aquisições mais atenta às minorias e um trabalho específico com públicos que costumam ficar à porta, resume a publicação especializada The Art Newspaper.
Esta nova atitude do Museu Guggenheim não é alheia, naturalmente, às grandes agitações sociais em torno do movimento Black Lives Matter, intensificado pela morte brutal de George Floyd, nem às queixas que chegaram à administração há cerca de dois meses, através de duas cartas.
A primeira, de 22 de Junho, assinada pelo departamento curatorial, exigia reformas urgentes na organização do museu para que este deixe de ter um ambiente de trabalho que “promove o racismo, a supremacia branca e outras práticas discriminatórias”. A segunda, que reunia 220 assinaturas de antigos e actuais funcionários do museu (o grupo que desencadeou a iniciativa já conhecida como A Better Guggenheim), pedia ao conselho de administração que trabalhasse no sentido de “desmantelar o racismo sistémico” da instituição.
“O Guggenheim não pode dizer que é uma instituição de referência sem primeiro expiar os seus erros e sem se comprometer com acções concretas e com a mudança”, escreveram os signatários que, mesmo temendo represálias, deixavam uma lista de exigências a que instavam o museu a dar resposta a curto e a médio prazo.
Uma comissária decisiva
Entre estas exigências está a abertura de uma investigação interna aos moldes em que decorreu a exposição Basquiat’s Defacement: The Untold Story, a primeira em 80 anos de história do museu a ter um comissário convidado – neste caso uma comissária – negro.
Foi precisamente a curadora Chaédria LaBouvier quem denunciou o ambiente que se vive no museu, ao partilhar na rede social Twitter que trabalhar com Nancy Spector, a directora artística da casa, tinha sido “a experiência profissional mais racista” da sua vida.
Garantem os signatários da iniciativa A Better Guggenheim que sem as acusações públicas de LaBouvier não teriam avançado: “Somos capazes de escrever esta carta agora porque ela deu o alarme, [denunciando] uma cultura de racismo institucional, sexismo, classismo, homofobia, e de actos de retaliação da supremacia branca, um fardo e um risco que ela nunca deveria ter suportado, e que suportou sozinha.”
O museu respondeu de imediato ao repto do A Better Guggenheim para que fosse aberta uma investigação ao sucedido no ano passado, contratando um advogado independente, que, segundo o New York Times, deverá dar a conhecer as suas conclusões no Outono.
Ainda de acordo com o New York Times, o Museu Guggenheim de Nova Iorque é a primeira grande instituição cultural americana a fornecer detalhes sobre os seus esforços para acolher as minorias e garantir a diversidade entre os seus funcionários.
Ir mais longe
Reconhecendo que o museu fez, desde 2010, alguns esforços para ser mais inclusivo, os autores deste programa a dois anos que a porta-voz do museu, Sarah Eaton, definiu ao Art Newspaper como uma “iniciativa dos funcionários” com um forte apoio do director do museu e do conselho de administração, dizem que é preciso ir mais longe.
A comissão que o elaborou – um consultor externo e oito funcionários do museu, grupo que inclui, segundo Eaton, seis pessoas não-brancas, sendo que quatro delas se indentificam como negras – garante que os visitantes do Guggenheim estão longe de reflectir a diversidade racial da cidade de Nova Iorque e recomenda que se alarguem os horários em que a política de bilheteira é “pague o que quiser”.
De acordo com um estudo de 2018 da empresa de marketing Morey Group, citado pela referida comissão, 73% dos visitantes do museu identificam-se como brancos, ao passo que a população branca da cidade se fica pelos 43%.
E se são poucos os não-brancos a visitar o museu, são também poucos os nele representados. No espaço da rotunda do icónico edifício desenhado por Frank Lloyd Wright, lembram os autores do plano, nunca houve uma exposição a solo de um artista negro, de uma artista não-branca ou de um artista transgénero.
“O momento actual exige que reconsideremos o papel fundamental que os museus de arte têm na sociedade: para quem são estas instituições, que responsabilidades devem assumir, e a quem devem prestar contas?”, perguntam.
Para Richard Armstrong, director do Guggenheim, aqui citado pelo New York Times, “este plano mostra uma maior sensibilidade em relação ao respeito [pela diversidade]” e “significa que a porta de entrada estará agora mais aberta, oferecendo mais oportunidades para uma maior variedade de pessoas imaginarem trabalhar em museus como uma carreira sustentável”.
Muitos dos funcionários do museu, no entanto, sentem que o plano agora apresentado não chega para pôr fim a uma série de práticas discriminatórias e garantem que muitos dos não-brancos que ali trabalham – 25% dos seus quase 550 funcionários, de acordo com o Art Newspaper – não tiveram oportunidade de ser ouvidos, já que, com o museu encerrado, foram obrigados a tirar uma licença em Abril. Armstrong, por seu lado, insiste em descrever o plano como “o começo de uma importante viragem cultural”.
De Detroit a Cleveland
Mas o Guggenheim está longe de ser o único museu norte-americano a enfrentar críticas devido às suas práticas discriminatórias.
Em Detroit, por exemplo, duas das principais instituições culturais da cidade viram os seus directores serem afastados na sequência de protestos dos funcionários. O Museu de Arte Contemporânea de Detroit despediu Elysia Borowy-Reeder na sequência de uma carta aberta em que 77 colaboradores denunciaram a sua “gestão de recursos humanos tóxica” e “agressões de conotação racista”, escreve o diário francês Le Monde. O Instituto de Arte de Detroit também afastou Salvador Salort-Pons, responsabilizando-o pela “cultura de trabalho hostil e caótica” ali instalada.
O impulso dado aos protestos raciais pela morte de George Floyd e a gestão algo errática de algumas instituições em tempos de pandemia parecem ter dado alento à denúncia de situações de profundas desigualdades que há muito se vinham perpetuando no seio dos museus norte-americanos. E nem o Museum Metropolitan de Nova Iorque (Met) escapou a críticas, depois de um dos seus principais conservadores, Keith Christiansen, responsável pelo departamento de pintura europeia, ter colocado um post na rede social Instagram em que, reagindo ao derrube de esculturas honrando personalidades de uma ou de outra forma ligadas à discriminação e à herança colonial em parques e jardins, instou quem o lesse a olhar para a história e escreveu: “Grandes obras de arte se têm perdido porque desejamos ver-nos livres de um passado que não aprovamos.”
Christiansen pediu desculpa, mas isso não impediu 15 funcionários do Met de escreverem à administração para que reconhecesse aquilo que consideraram “a expressão de uma lógica profundamente enraizada de supremacia branca e uma cultura de racismo sistémico” no museu.
Desculpar-se foi também o que fez Jill Snyder, há 23 anos directora do Museu de Arte Contemporânea de Cleveland, depois de ter cancelado, sem consulta prévia de outros membros da sua equipa, uma exposição de Shaun Leonardo inspirada nos homens e rapazes negros e latinos mortos às mãos da polícia. A responsável acabou por demitir-se na sequência de protestos internos e externos.