Ex-director de Veterinária acusa primeiro-ministro de desrespeitar a DGAV
Fernando Bernardo bateu com a porta já na sexta-feira passada, depois de ouvir António Costa criticar o organismo que liderava, na sequência do incêndio de Santo Tirso.
O ex-director-geral de Alimentação e Veterinária explicou ao PÚBLICO que pediu a demissão do cargo já na sexta-feira passada, com efeitos imediatos, depois de ter ouvido António Costa afirmar, no Parlamento, que a DGAV não tem sido competente para lidar com o abandono dos animais de companhia. Fernando Bernardo, que já regressou ao seu lugar de professor catedrático na Universidade de Lisboa, garante não se ter sentido “atingido” pelas críticas. Sai, garante, por considerar que “aquela casa centenária merece mais respeito, por tudo o que fez pelo país”.
“Esta instituição ajudou a acabar com a fome, com a raiva, a peste suína africana e outras doenças graves. Eu tenho 43 anos de trabalho na administração pública, e não me sinto atingido, mas aquela afirmação foi letal”, acrescenta o ex-director. O académico lembra que não cabe à Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) resolver o abandono de cães e gatos, mas cuidar dos aspectos de saúde e bem-estar destes e de outros animais. O investimento nos centros de recolha e na contratação de pessoal para os municípios cabe a estes, com o apoio do Governo, argumentou, em declarações ao PÚBLICO.
A saída deste dirigente, e as declarações de Costa que a provocaram, tinham como pano de fundo o trágico incêndio do fim-de-semana anterior, que atingiu dois abrigos ilegais de animais na serra da Agrela, matando pelo menos 69 cães e quatro gatos. E, sobre este caso concreto, o ex-director sai em defesa da instituição que liderava desde 2016, lembrando que, em 2012, a DGAV deu ordem de encerramento destes espaços, ordem essa, insiste, que teria de ser cumprida pelo município de Santo Tirso.
Em vez disso, acrescentou, a autarquia foi produzindo relatórios em que minimizava os problemas existentes - que, nessas avaliações, se cingiriam à falta de higiene e de registo de parte dos animais ali abrigados - informação essa que levou o Ministério Público a arquivar uma queixa, em 2018. Decisão tomada considerando que, no local, os animais não eram sujeitos a “maus tratos”. Para Fernando Bernardo, a lei, que, diz, é clara na definição do papel de cada instituição nestes casos, “não foi cumprida em vários momentos”.
A DGAV e os animais de estimação
Na última sexta-feira, durante o debate do Estado da Nação, o primeiro-ministro, António Costa, caracterizou o incêndio em Santo Tirso como um “massacre chocante”, “absolutamente intolerável”. O primeiro-ministro disse que irá aguardar pelos factos saídos do inquérito aberto pela Inspecção-Geral da Administração Interna à forma como decorreu o combate ao fogo e o socorro de mais de 260 animais existentes naqueles abrigos, mas admitiu ser necessário repensar o quadro legal e a “orgânica do Estado” nesta matéria.
“Obviamente a DGAV [Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária] não está feita para cuidar de animais de estimação e manifestamente não tem revelado capacidade ou competência de se ajustar à nova realidade legislativa que temos”, respondeu o chefe do executivo, interpelado pelo PAN, apelando ao “esforço” e “humildade” para avaliar a lei, para que situações semelhantes não se repitam.
As críticas de Costa caíram mal também na Associação Nacional de Veterinários dos Municípios (Anvetem). Em comunicado divulgado na segunda-feira à noite, ainda antes de ser conhecida, publicamente, a demissão de Fernando Bernardo, esta organização “repudiou” as declarações do primeiro-ministro. “Esta é a DGAV que foi sendo progressivamente subalternizada ao poder político durante os sucessivos governos”, acusam, vincando que “relativamente à última e mais drástica alteração legislativa em matéria de animais de companhia, a Lei 27/2016 [que proibiu os abates nos canis], de 23 de Agosto, que o primeiro-ministro admite agora rever, a DGAV não foi sequer consultada”.
Veterinários criticam milícias populares
Estas declarações do primeiro-ministro foram proferidas no final de uma semana em que, na sequência daquele incêndio e das criticas à inoperância das autoridades - que levaram Santo Tirso a suspender o seu veterinário municipal e a abrir um inquérito interno - os médicos veterinários municipais dizem ter sido “sujeitos a tentativas de linchamento público e insultos, designadamente nas redes sociais”. “Os médicos veterinários municipais, tal como os agentes das forças de segurança, são a face visível do Estado. É imperativo que eles sejam respeitados sob pena da sua autoridade se esvaziar e a sua acção ficar definitivamente condicionada. Exigimos à tutela, mão firme contra os abusos e ofensas dirigidas aos médicos veterinários municipais ou agentes das forças de segurança”, insistiu a Anvetem.
Esta associação diz ter assistido “com perplexidade à forma como milícias populares se deslocaram a outro abrigo em condições similares em Canedo, Santa Maria da Feira e através da violência e coação física e verbal intimidaram e agrediram a proprietária do alojamento e condicionaram a actuação do médico veterinário municipal e das forças de segurança, inspeccionando veículos do município e o próprio alojamento, fazendo acreditar que o poder caiu nas ruas pela mão destas milícias populares”.
Segundo a Anvetem, “o mesmo fenómeno tem-se repetido um pouco por todo o país em que grupos de pessoas acompanham e escrutinam a actuação dos médicos veterinários municipais e das forças de segurança nas suas acções de fiscalização de situações relacionadas com animais de companhia. No início da semana, uma situação como a que relatam aconteceu em Sobrado, no concelho de Valongo, em espaços associados à proprietária de um dos abrigos afectados pelo fogo, na Serra da Agrela.
Qualquer pessoa de bem se demitiria
Em declarações ao PÚBLICO, já nesta terça-feira, a presidente desta organização, disse “compreender” a decisão de Fernando Bernardo. “Qualquer pessoa de bem se demitiria”, afirmou Vera Ramalho, acrescentando que o quadro de actuação da DGAV tem sido prejudicado por cativações sucessivas, falta de meios humanos e materiais, desde computadores a software, num tempo em que as exigências no sector alimentar e veterinário são cada vez maiores. “Ao arrepio da lei”, a DGAV “não dá posse a nenhum médico veterinário municipal desde 2008, contando apenas no presente com 146 médicos veterinários municipais investidos do poder de autoridade sanitária veterinária concelhia”, denuncia a Anvetem.
Vera Ramalho mostrou-se também perplexa com as declarações de Costa sobre a suposta incapacidade da DGAV para lidar com o bem-estar dos animais de companhia. “Não compreendo como se pode dissociar uns animais dos outros. As doenças, as zoonoses, que podem também afectar os humanos, não são dissociáveis”, frisa esta veterinária municipal.