Albert Lourtie: o cervejeiro que foi prisioneiro na I Guerra dá nome a cerveja artesanal portuguesa

Lisboa acolheu o mestre cervejeiro que foi soldado belga e preso alemão durante a I Guerra Mundial. Albert Lourtie foi uma das mentes por trás da receita da Sagres e os contributos para a indústria em Portugal são agora celebrados com o lançamento de uma cerveja artesanal com o seu nome.

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Diogo Vinagre, da Cerveja Trindade, e João Brazão, da Cerveja Trevo DR

Fez parte da curta lista, completamente estrangeira, de mestres cervejeiros que trabalhava em Portugal no início do século XX e a sua influência na indústria mantém-se até hoje, mas o nome de Albert Lourtie não dirá muito à maior parte dos portugueses. Agora tem uma cerveja com o seu nome, lançada pelas cervejas Trindade e Trevo que, em colaboração com o bisneto do belga, quer celebrar o centenário do início da dedicação do mestre cervejeiro à indústria em Portugal.

Quando veio para Lisboa, em 1919, Albert Lourtie deixou para trás a fábrica de cerveja do pai, que não resistiu aos confrontos da I Guerra Mundial.

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Albert Lourtie (dir.) com o filho Fernand Noël Lourtie (esq.) na fábrica da Portugália DR
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Albert Lourtie (sentado) fotografado enquanto prisioneiro na I Guerra Mundial, num postal enviado para a família DR

Foi na Brasserie Lourtie-Dor, em Liège, na Bélgica, que deu os primeiros passos enquanto mestre na indústria que viria a acompanhá-lo durante o resto da sua vida. Contudo, o espoletar da I Grande Guerra fez dele soldado, assim como tantos outros jovens da altura. Combateu e até foi prisioneiro. O envio de postais com fotografias dos presos como prova de vida era prática comum para os alemães na altura e a família Lourtie ainda guarda uns quantos.

As memórias da história mantêm-se vivas até ao dia de hoje pela voz de Miguel Lourtie, o bisneto de Albert. O português de 50 anos colaborou com os mestres cervejeiros Diogo Vinagre, da Cerveja Trindade, e João Brazão, da Cerveja Trevo, que lançam agora a Albert Liège Spelt Ale, uma cerveja de homenagem ao belga e que celebra os 100 anos do início do seu trabalho em Portugal.

Reza a lenda, conta Miguel Lourtie à Fugas, que, à procura de trabalho depois da guerra e perante a escolha entre Oslo, Noruega e Lisboa, Albert Lourtie terá preferido “o clima mais agradável” das terras lusas.

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Miguel Lourtie, bisneto de Albert Lourtie DR

Já com certeza, sabe-se que começou a trabalhar na fábrica da Portugália a 6 de Julho de 1920, revela o bisneto. Nessa altura, “a indústria [em Portugal] era pouco desenvolvida”, explica Nuno Pinto de Magalhães, director de comunicação da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas (SCC), companhia que resultou da fusão da Portugália com as outras três fábricas existentes no país em 1934.

Albert Lourtie não era o único belga a produzir cerveja em Portugal. De facto, “toda a indústria era composta por mestres cervejeiros belgas e alemães”, continua Nuno Pinto de Magalhães. “Não havia mestres cervejeiros portugueses”, sublinha Miguel Lourtie. Assim sendo, o bisneto explica que não é possível falar de uma cerveja tradicional portuguesa, pelo menos na altura, e que seriam sobretudo pilsners com características do Centro e Norte da Europa a cerveja tipicamente consumida em Portugal.

A sua influência enquanto profissional chega até aos dias de hoje. Em 1940, foi convidado para ser o mestre cervejeiro de uma nova fábrica da SCC: a Sagres. “Ele foi o homem que criou e produziu a receita inicialmente”, explica o director de comunicação da empresa, “e manteve-se até 1968 quando se abriu a fábrica em Vialonga”.

As raízes da criação da Sagres estão ligadas com a Exposição do Mundo Português, pensada pelo Estado Novo e realizada durante 1940 em Lisboa, mas para a história fica a relação da bebida com as tropas britânicas estacionadas em Gibraltar durante a II Guerra Mundial. Segundo Nuno Pinto de Magalhães, o embaixador inglês em Lisboa terá acordado com António Ferro, figura do Estado Novo com um papel fundamental na Exposição, que se encontrasse “uma solução para que a cerveja que chegasse a Gibraltar e ao Norte de África viesse por terra a partir de Portugal, uma vez que os navios de carga britânicos eram constantemente afundados pelos alemães”. A resposta surgiu através da Sagres, com a receita pensada pelo mestre belga.

A arte passou para a geração seguinte e, segundo Miguel Lourtie, o seu avô, filho de Albert, terá sido “o primeiro mestre cervejeiro português”. Foi Fernand Nöel Lourtie que substituiu o pai quando este se reformou da Sociedade Central de Cervejas. A veia de fabricante já não chegou ao século XXI. Miguel Lourtie trabalha na área do áudio e acústica. Contudo, entre risos, conta que continua a tradição familiar, “pelo menos na óptica do consumidor”.

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A cerveja, lançada em colaboração entre a Trindade e a Trevo, está disponível em barril e lata de 44cl DR.

Foi exactamente nessa óptica que o descendente português trabalhou com os mestres cervejeiros da Trindade e da Trevo. Para tentar recriar uma receita do que seria produzido em Liège há mais de 100 anos, o grupo procurou a ajuda do historiador holandês Roel Mulder, que, através do site Lost Beers, se dedica a estudar e partilhar a história da cerveja pelo mundo fora. A receita final, baseada na espelta e adaptada aos paladares contemporâneos, pode ser encontrada em barril e latas de 44cl, com um rótulo que explica o histórico por trás do lançamento especial.

A Albert Liège Spelt Ale, de cor âmbar e com sabor rico a cereais, agrada ao descendente do homenageado. “É, sem dúvida, uma cerveja espectacular”, diz Miguel Lourtie, que sublinha o prazer de “desenterrar” a história do seu familiar.

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