A vacina miraculosa para a pandemia?
A fase confusa e por vezes mesmo caótica do desconfinamento tem como ponto culminante a escolha de Portugal para a fase final da Liga dos Campeões de futebol.
As coincidências são raramente fortuitas e o exemplo mais recente é a escolha de Portugal para cenário da fase final da Liga dos Campeões, uma escolha contrastante com a desqualificação de turistas portugueses para visitar países como a Dinamarca, a Áustria, a Grécia ou Chipre. Como se explica que Portugal seja simultaneamente escolhido para o evento mais importante da agenda desportiva europeia do ano – o que implica critérios sanitários apertados – e excluído do acesso a destinos internacionais por ser um local sensível de propagação da covid-19? Pura e simplesmente não se explica, apenas se confirma a confusão e dualidade de critérios adoptados pelas diferentes instâncias comunitárias e que tendem perigosamente a agravar-se. Escolhido como modelo de virtudes para acolher a Final Eight, Portugal é, por outro lado, apontado a dedo como portador de uma ameaça à saúde europeia.
Nada disto é de facto surpreendente se tivermos em conta as sucessivas contradições que se têm manifestado nas análises e balanços feitos à covid-19. Falta um verdadeiro esforço europeu para uma leitura coerente dos dados disponíveis, enquanto se verifica um enviesamento político de alguns países castigando a «performance» portuguesa (assinalada, no início, como das mais conseguidas no combate à pandemia). Mas se esse castigo a Portugal peca por ser claramente injusto, a forma como foi acolhida pelas figuras mais destacadas do Estado a nossa escolha para palco da fase final da Liga dos Campeões é reveladora de um provincianismo saloio, a que não faltou sequer uma solene cerimónia comemorativa em Belém. Provincianismo que chegou ao ponto quase grotesco de se considerar essa escolha – pela voz de António Costa e Graça Freitas – como um prémio e uma homenagem aos profissionais de Saúde!...
Mas este «happy-end» futebolístico parece representar, sobretudo, um troféu para o Governo e para o Presidente da República. Ora, não deixa de ser chocante que depois da postura de Estado que Marcelo e Costa demonstraram durante o período do confinamento, a fase confusa e por vezes mesmo caótica do desconfinamento tenha como ponto culminante a escolha de Portugal para a fase final da Liga dos Campeões de futebol. Como é imenso o contraste entre as atitudes do Presidente e do chefe do Governo durante esse período inicial – nomeadamente quando Costa assumiu com humildade que não tinha certezas e que estaria disponível para fazer uma inversão de marcha se a experiência demonstrasse essa necessidade – e o ambiente folclórico deste festival futebolístico (que não se sabe ainda em que condições se desenrolará, respeitando a preservação das regras sanitárias) …
Como se explica que as mesmas figuras públicas que estiveram tão claramente à altura das suas responsabilidades na fase inicial da pandemia, se deixem arrastar hoje para uma representação tão ostensivamente caricatural dos respectivos papeis? Será porque temem eventualmente retractar-se, sobretudo num momento em que assistimos a um agravamento dos casos de contágio na região da Grande Lisboa, e o futebol funciona como uma espécie de exercício de ocultação e fuga para a frente?
O futebol sinónimo de alienação das massas, naquilo que ele tem de pior, parece ter contagiado os comportamentos políticos, coagindo-os a uma atitude de demissão e submissão. Uma atitude sem regresso – e que põe definitivamente em xeque a lucidez e a nobreza desses comportamentos. Como é possível que o Presidente, o primeiro-ministro e outros responsáveis não sejam capazes de ver aquilo que nos entra pelos olhos dentro? Não, o futebol não é a vacina miraculosa para a pandemia.