Pacote legislativo sobre floresta aprovado “à revelia do sector”

O presidente da CAP, Eduardo Oliveira e Sousa, garante que os novos diplomas “não foram, em qualquer momento, objecto de discussão”. AIMMP não foi ouvida. Forestis deu “algum contributo”. Governo fala de “trabalho intenso, complexo, muito maturado e discutido”.

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Adriano Miranda

Os tempos que correm “recomendam que o diálogo inter-institucional se faça ainda com mais vigor e regularidade, a bem da transparência e da eficácia legislativa”, lembra a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). O Governo, porém, aprovou um pacote legislativo para a floresta que o presidente da CAP, Eduardo Oliveira e Sousa, diz ter sido feito “à revelia do sector”. A Forestis, a Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal (AIMMP) e a Confederação Nacional da Agricultura vão na mesma senda. O Governo desmente.

A informação disponível sobre este pacote legislativo é ainda pouco abundante, e assenta num comunicado do Conselho de Ministros datado de 21 de Maio, onde os diplomas “que têm como objectivo tornar os territórios mais resilientes ao risco de incêndio” são descritos de forma sucinta.

Ao PÚBLICO, o presidente da CAP fala de “um conjunto de oito diplomas aprovado sem qualquer auscultação do sector”. Sobretudo, quando estão em causa “significativas alterações legislativas” que implicam “simplificação, descentralização e transferência de competências e responsabilidades”, incluindo para “organizações” e “entidades privadas”.

Eduardo Oliveira e Sousa não põe em causa “a legitimidade de o Governo aprovar legislação sobre o sector florestal”. Realça, no entanto, que “um processo desta natureza, e com esta extensão, recomendaria a auscultação do sector”. Aliás, diz mais: “O próprio Conselho Florestal Nacional, órgão de consulta, por excelência, na área das florestas, não foi ouvido neste processo.” “Na única reunião do Conselho Florestal Nacional apenas foram feitas referências genéricas aos propósitos do Governo e aos domínios em que pretende actuar”, lamenta o presidente da CAP.

Por seu lado, João Dinis, dirigente da Confederação Nacional da Agricultura, fala de “tendência tecno-burocrática”, dando como exemplo o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, aprovado em Conselho de Ministros a 21 de Maio e cujo diploma ainda não está publicado. “Mais do que continuar a produzir ‘paletes’ de legislação, importa que o Governo actue no terreno e, sobretudo, apoie devidamente os proprietários e produtores florestais.”

A Forestis – Associação Florestal de Portugal admite “algum contributo para esta legislação”. O presidente, Luís Braga da Cruz, afirma ao PÚBLICO que “a Forestis foi ouvida no Conselho Florestal Nacional de 29 de Janeiro”. “Eu, pessoalmente”, acrescenta Braga da Cruz, “fui convidado por mais do que uma vez para participar no Plano de Gestão Integrada dos Fogos Florestais e, inclusive, participei sobre o tema num debate nacional em Santarém, com o Primeiro-Ministro e vários ministros”. Depois disso, assume, “ainda mandei um depoimento escrito de oito páginas em nome da Forestis para complementar as orientações estratégicas do plano”. 

Vítor Poças, presidente da AIMMP, garante: “Não fomos ouvidos e não demos contributos específicos.” Considera, ainda assim, que “os títulos e objectivos plasmados no comunicado do Conselho de Ministros de 21 de Maio são fortes, bem-intencionados e parecem comportar um conjunto de chavões e de medidas que vêm ao encontro de algumas opiniões mais ou menos pacíficas e muito defendidas pelas diversas entidades que integram o Conselho Florestal Nacional”.

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Luís Braga da Cruz, presidente da Forestis, afirma que, com um ICNF "descapitalizado de técnicos" e "longe do terreno", este plano de gestão integrada "não funciona". (Imagem de arquivo, 2015) Adriano Miranda

Linhas de acção “muito bem acolhidas pelo sector”

Ouvido pelo PÚBLICO sobre estas críticas, o secretário de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território, João Catarino, desmente. “Foi um trabalho intenso, complexo, muito maturado e discutido, do qual me orgulho, e estou certo que merecerá o acolhimento do sector”, garante o governante. Acrescenta até que “todas estas medidas eram conhecidas há já largos meses, quer pelo sector, quer pela imprensa”. A prova, diz, é “o artigo do Público, de 13 de Fevereiro do presente ano, onde, inclusive, é revelado o mapa dos territórios potenciais a sujeitar a Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem”.

O PÚBLICO também questionou, via email, João Catarino sobre se o Conselho Florestal Nacional foi ouvido a respeito deste conjunto de diplomas e se deu contributos. O secretário de Estado esclareceu que “todo o pacote legislativo foi apresentado ao sector na reunião do Conselho Florestal Nacional de dia 29 de Janeiro”, cujo primeiro ponto na ordem de trabalhos previa a “apresentação das linhas gerais de acção da Política Florestal para a legislatura”. Nessa reunião, nota João Catarino, foram “apresentadas pelo senhor ministro do Ambiente e da Acção Climática e por mim próprio, as linhas de acção e opções políticas que vínhamos a construir desde o início do mandato e que foram nesta sede muito bem acolhidas pelo sector”.

“Antes e depois desta data, recebi em audiência as entidades do sector que o solicitaram, tendo, no âmbito dessas reuniões, recebido contributos e apresentado de forma detalhada o nosso programa e esclarecido sempre todas as questões que me foram colocadas”, frisa João Catarino.

O governante sublinha que todo o programa “foi desde muito cedo anunciado e apresentado em várias cerimónias públicas, nas quais o sector se encontrava presente”. “Uma das primeiras vezes, ainda em linhas gerais, foi na apresentação pública dos resultados finais do 6.º Inventário Florestal Nacional, a 21 de novembro de 2019”. Mais tarde, “no Seminário de Encerramento do Processo de Discussão Pública do Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, a 12 de Fevereiro, amplamente noticiado pelos órgãos de comunicação social”, entre eles o PÚBLICO.

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“Um processo desta natureza, e com esta extensão, recomendaria a auscultação do sector”, defende o presidente da CAP, Eduardo Oliveira e Sousa. (Imagem de arquivo, 2018) Nuno Ferreira Santos

Gestão Integrada de fogos rurais sem “resultados visíveis”

O Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais (PNGIFR) é um dos diplomas aprovados a 21 de Maio. Ainda não foi publicado. Esteve em processo de discussão pública de 5 de Dezembro de 2019 a 5 de Fevereiro 2020.

A AGIF – Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais garante, no seu website, que foi “apresentado em mais de 60 sessões públicas a várias entidades”. Valorizar o território, cuidar dos espaços rurais, modificar comportamentos e gerir eficientemente o risco são os quatro grandes objectivos estratégicos do plano.

No terreno, a sua concretização passará por um “processo de construção de programas de acção regionais, aos quais são atribuídas prioridades, linhas de acção e projectos a implementar no tempo”. Tudo, diz o Governo, “com orçamentos definidos e indicadores de desempenho e resultado”. Ao PÚBLICO, o presidente da CAP abstém-se de dar opinião. “O Governo não deu a conhecer o plano na sua versão final, pelo que a pergunta não é passível de resposta”, diz.

A AIMMP é muito crítica. “Desconhecemos o plano, pelo que não nos pronunciamos, por agora”. Porém, diz Vítor Poças, “a estrutura dedicada à gestão integrada de fogos rurais tem andado perdida na procura da sua identidade hierárquica”. Mais: “Ainda não teve oportunidade de apresentar resultados visíveis, numa área que realmente é muito complexa.”

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Transformação da Paisagem “não tem impacto sem caminhos e emparcelamento”

Também está para breve o Programa de Transformação da Paisagem (PTP). É dirigido aos territórios de floresta com elevada perigosidade de incêndio. O diploma, aprovado no dito Conselho de Ministros de 21 de Maio, aguarda publicação em Diário da República.

Desagradada, a CAP “igualmente nada conhece sobre o que será o PTP e as suas disposições”, pelo que Eduardo Oliveira e Sousa não se pronuncia. Vítor Poças dá o benefício da dúvida: “Aparentemente, a medida é positiva, para além do mais, promove a biodiversidade e o equilíbrio entre espécies.” O presidente da AIMMP supõe, porém, que “não vai ter qualquer impacto na relação entre a causa e o efeito pretendido, se não for acompanhada por outras medidas, designadamente o emparcelamento, já previsto, e a abertura e o alargamento dos caminhos florestais, aparentemente ausentes destas medidas”. E a sua execução, diz, “é da maior urgência”.

“Uma rede alargada de infraestruturas florestais é fundamental para assegurar e facilitar o policiamento e a vigilância da floresta, [bem como] auxiliar o acesso dos bombeiros e outros meios de combate aos incêndios”, alerta Vítor Poças, realçando que, em algumas situações, essa rede de caminhos florestais “serve como linha corta-fogo”. Por outro lado, admite, “valoriza os recursos florestais porque melhora as condições da sua exploração”.

Ao PÚBLICO, o secretário de Estado João Catarino sublinha: “O Programa de Transformação da Paisagem, ‘programa-chapéu’ das várias medidas aprovadas, integra os programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem, as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem, o Condomínio de Aldeia e o Emparcelar para Ordenar”. Para além deste leque, o governante destaca a “aprovação do regime do manifesto de corte, a alteração ao regime jurídico aplicável aos sapadores florestais, a alteração ao RJAAR [regime jurídico aplicável às acções de arborização e rearborização], a criação da Estrutura de Missão para a Expansão do Sistema de Informação Cadastral Simplificada e o modelo de governação do PNPOT [Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território]”. Nenhum destes diplomas aprovados foi ainda publicado.

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O secretário de Estado João Catarino desmente que o sector não tenha sido auscultado: “Foi um trabalho intenso, complexo, muito maturado e discutido”, garante. (Imagem de arquivo, 2019) Sérgio Azenha

“ICNF não tem capacidade de intervir no terreno”

Uma das grandes novidades do pacote legislativo para a floresta é a aprovação do regime do manifesto de corte, corte extraordinário, desbaste ou arranque de árvores e da rastreabilidade do material lenhoso. Vem instituir um mecanismo obrigatório de entrega do manifesto de corte de árvores, através de uma plataforma electrónica de dados, a SiCorte.

A esse respeito, o presidente da CAP é lacónico. Diz que “a exequibilidade deste regime dependerá dos termos em que é definido, que não são conhecidos”.

A AIMMP reprova este regime. “Portugal é muito bom nestas coisas da burocratização e do controlo a partir de Lisboa”, comenta Vítor Poças. “Esta medida tem pouco que ver com a melhoria da floresta que pretendemos, mas muito mais com outras questões que, no final, não acrescentam nada.”

“Digamos que andamos com o carro à frente dos bois”, lamenta o Presidente da AIMMP, pois, “há tanto para fazer no terreno que não é nem vai ser feito, e inventa-se agora mais uma plataforma informática para sobrecarregar administrativamente quem trabalha e faz alguma coisa pela floresta”.

Luís Braga da Cruz até deu contributos para o dossier. O presidente da Forestis diz ao PÚBLICO que comentou “de forma positiva” e, quanto ao manifesto de corte, considera que a monitorização do corte é “um avanço importante”, pois garante “grande transparência para o mercado”.

“Era necessário termos uma forma menos burocrática e que acreditasse mais nos reportes de boa-fé”, diz Braga da Cruz, admitindo que “a burocracia gera incapacidade de intervenção da autoridade florestal a nível regional. E não funciona.”

O presidente da Forestis enfatiza a necessidade de todo este pacote do plano de gestão integrada dos fogos rurais carecer de “um plano de diagnóstico estratégico, de coordenação de acção”. E hoje, diz, “só uma pequena parte do plano é que está visível”.

“O que é muito importante é que tudo isto exige capacidade de coordenação dos serviços do ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] – entidade que, considera, “neste momento tem pouca capacidade de intervir no terreno”. “O ICNF foi descapitalizado de técnicos, foi desvalorizado com serviços da Administração Central desconcentrada, vive em Lisboa longe do terreno, os técnicos do ICNF são muitas vezes abandonados lá, nas suas funções de gestão”, nota Luís Braga da Cruz. “Se não houver uma fortíssima intervenção a nível regional, com o empoderamento dos responsáveis a nível regional, tudo isto não funciona”.

Questionado pelo PÚBLICO sobre esta alegada falta de meios, o ICNF fez saber que essa situação é sobejamente conhecida, incluindo pela Assembleia da República que aprovou o Orçamento de Estado, que prevê um reforço de recursos para o ICNF”.

Notícia actualizada às 19h01 do dia 9 de Junho, com a reacção do ICNF a respeito da falta de recursos do instituto.

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