Supercontagiadores podem infectar dezenas de pessoas. O que se sabe sobre eles?
Estudos sugerem que uma grande parte dos infectados não contagia outras pessoas, enquanto determinados indivíduos, os chamados supertransmissores, poderão infectar dezenas.
Estima-se que, em média, cada pessoa infectada pelo novo coronavírus contagia outras duas ou três pessoas, mas há alguns indivíduos que têm uma capacidade de contagiar dezenas. Chamam-lhes supercontagiadores e este fenómeno foi também já observado no caso de outras doenças como a por vírus ébola, o tifo, a sida ou a síndrome respiratória aguda grave (SARS).
A SARS, provocada por um primo do novo coronavírus, originou um surto epidémico em 2002/2003. Pouco tempo depois, um estudo sobre o surto da doença em Singapura revelou que, dos primeiros 205 casos relatados de SARS naquela cidade-Estado, cerca de 81% aparentavam não ter contagiado ninguém.
Através de uma análise matemática e estatística, os investigadores da Universidade de Hong Kong descobriram que 71,1% e 74,8% das infecções por SARS-Cov em Hong Kong e Singapura estavam relacionadas com eventos de supertransmissão, respectivamente, e que em ambos os territórios “nem todos” os pacientes com SARS revelaram ser contagiosos. “De facto, a maioria deles tinha um nível de infecciosidade, se algum, muito baixo”, lê-se no estudo.
“De acordo com as nossas estimativas, os eventos de supercontágio tiveram um papel muito importante na epidemia de SARS, sendo responsáveis por quase três quartos das infecções em Hong Kong e Singapura”, referem os autores, sublinhando a importância de prevenir e controlar tais eventos, que podem ter “implicações importantes” na saúde pública. “Um superdisseminador ou um evento de supertransmissão podem provocar um novo surto se os mecanismos de tal evento ou estratégias eficazes de controlo não forem identificadas”, concluíam, à data, os investigadores.
Os especialistas chegaram ainda à conclusão de que estes surtos causados por eventos de supertransmissão poderiam estar relacionados com o facto de a pessoa em questão não ter sido isolada ou internada nos quatro dias seguintes ao início dos sintomas. “Não sabemos exactamente o que diferencia um supertransmissor de outros indivíduos infectados, mas os nossos resultados sugeriram que a admissão tardia num hospital (mais de quatro dias) após o início dos sintomas pode ser parcialmente responsável pela ocorrência de eventos de supercontágio, especialmente durante a fase inicial da epidemia, uma vez que os pacientes internados tardiamente poderiam ter desenvolvido uma carga viral elevada”, explicam os autores, sublinhando a importância da “detecção, diagnóstico, internamento e isolamento precoces”.
Porém, os especialistas destacam que a transmissão da doença pode ser também influenciada por “factores epidemiológicos e ambientais”. Entre eles, podem estar factores relacionados com o agente (estirpe, infecciosidade, virulência, carga viral, fonte e capacidade de sobrevivência em diferentes meios e superfícies); factores ambientais (como a proximidade de contactos, densidade populacional, temperatura e humidade, processos de aerossolização, fluxos de ar e ventilação) ou factores relacionados com o indivíduo infectado (idade, sexo, estatuto nutricional, defesa imunitária, comorbidades, hábitos pessoais e uso de drogas).
Neste sentido, os especialistas concluíam à data que estes tipos de fenómenos “devem ser investigados devidamente para identificar os factores subjacentes comuns para a prevenção eficaz da SARS no futuro”.
80% dos casos provocados por 10% dos infectados
No que diz respeito ao novo coronavírus, SARS-Cov-2, estima-se que, em média — e se não forem aplicadas medidas de higiene ou distanciamento social —, cada infectado transmite o vírus a duas ou três pessoas. Mas, tal como aconteceu com o primeiro SARS-Cov, é possível que uma grande parte dos infectados contagiem poucas ou nenhuma pessoa e que haja alguns indivíduos capazes de transmitir o vírus a mais pessoas do que a média.
Um estudo, publicado em Abril por investigadores da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, estima que cerca de 80% dos casos de infecção pelo novo coronavírus analisados foram provocados por cerca de 10% dos infectados.
A análise foi feita com base nos dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a 27 de Fevereiro de 2020, o último relatório a apresentar o número de casos importados e locais em cada país afectado.
Os investigadores analisaram o número médio de contágios causados por cada pessoa infectada (o chamado R0), assim como a variação no número de transmissões secundárias e os chamados eventos de superdisseminação.
“A nossa descoberta de uma distribuição altamente dispersa evidencia um potencial benefício em concentrar os esforços de intervenção [nos eventos] de supertransmissão. Uma vez que a maioria dos indivíduos infectados não contribui para a expansão da epidemia, o número efectivo de reprodução [R0] pode ser drasticamente reduzido ao prevenir estas situações relativamente raras. A identificação das características de ambientes que podem levar a eventos de supertransmissão terá um papel fundamental no planeamento de estratégias de controlo eficazes”, lê-se no estudo.
Os resultados sugerem que “nem todos os casos sintomáticos causam uma transmissão secundária”, tal como foi observado noutras doenças como a SARS. “Para os valores do R0 entre 2 e 3, as estimativas sugerem que 80% das transmissões secundárias podem ter sido causadas por uma pequena fracção de indivíduos infecciosos” (cerca de 10% do número total de infectados), concluem os autores.
Porém, os investigadores destacam um possível enviesamento causado pela subnotificação de casos nalguns países devido à falta de controlo ou de capacidade de fazerem testes.
Análise de mais de 4700 genomas
Um outro estudo realizado por investigadores da Universidade de Santiago de Compostela e do Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela, publicado a 19 de Maio, analisou também o papel dos supercontagiadores na propagação do novo coronavírus. A equipa, liderada por Antonio Salas e Federico Martinón-Torres, analisou uma amostra de mais de 4700 genomas do vírus e observou as suas mutações para reconstruir o comportamento do agente patogénico desde a sua origem.
“Entre as coisas positivas, vimos que houve pouca variação, que é estável, e isso é melhor para que as vacinas que se estão a desenvolver funcionem”, explica ao El País o investigador Federico Martinón-Torres. Segundo o diário espanhol, os autores chegaram à conclusão de que estes supertransmissores — neste caso, dezenas de indivíduos que contagiam 20 a 30 pessoas com quem estiveram em contacto — podem ter estado por detrás de metade dos cerca de cinco mil casos de infecção.
“Descobrimos algumas dezenas de genomas (representando mais de um terço da base de dados total) que desempenharam um papel fundamental enquanto supertransmissores da doença covid-19”, lê-se no estudo. Os investigadores salientam ainda que a detecção e análise destes genomas poderá ser essencial para “compreender os mecanismos da infecção e transmissão do agente patogénico”.
Já Fernando González Candelas, investigador da Fundação para a Promoção da Investigação Sanitária e Biomédica da Comunidade Valenciana (Fisabio) e responsável por um projecto que pretende reunir até 20 mil sequências do genoma do vírus em Espanha, alerta que o efeito observado pode dever-se a fenómenos distintos. “Se, por exemplo, num local de trabalho, chega uma pessoa e contagia outra que, por sua vez, infecta outra e assim sucessivamente até [infectar] 30, o que observaríamos no estudo dos genomas seria o mesmo do que se uma única pessoa chegasse a esse local de trabalho e contagiasse [sozinha] as 30. É necessária uma análise epidemiológica detalhada para descobrir quem infectou quem”, explica ao El País.
Antonio Salas concorda que agora importa identificar esses potenciais superdisseminadores e analisar as suas características, tanto biológicas como ao nível do comportamento social. “Seria muito interessante ter uma amostra grande de supertransmissores, de centenas ou milhares, para compreender o que acontece com eles”, nota.
Porém, não há ainda estudos extensivos o suficiente que permitam identificar as características destes indivíduos e em que circunstâncias se manifestam. Os especialistas explicam ao El País que os supertransmissores podem tratar-se, por exemplo, de pessoas que, devido ao seu sistema imunitário, têm uma carga viral elevada, mas que são assintomáticas, o que significaria que poderiam transmitir o vírus por um longo período de tempo sem apresentar qualquer sintoma. Além disso, a combinação com outras doenças também poderá aumentar a capacidade de transmissão do novo coronavírus — um fenómeno que já foi observado em pessoas que, além de VIH, tinham herpes, aumentando assim os níveis de material genético do vírus detectados no sémen.
Para Fernando González Candelas, poderá vir a ser muito importante identificar estas pessoas e conhecer as suas particularidades, embora o especialista acredite que, neste momento, “é mais fácil identificar as características dos ambientes de risco do que as dos indivíduos”.
Foco de propagação num funeral em Espanha
O diário El País refere o caso de La Rioja, onde se identificou, em Março, um dos principais focos de propagação do novo coronavírus em Espanha. A 12 de Março, a comunidade de La Rioja era uma das mais afectadas pela epidemia de covid-19 em Espanha, com 185 casos de covid-19, uma grande parte relacionados com um foco de propagação no município de Haro. Tudo isto depois de a 23 e 24 de Fevereiro quase cem pessoas terem participado no velório e funeral de um homem em Vitoria, no País Basco.
Enrique Ramalle, director-geral de Saúde Pública, Consumo e Assistência de La Rioja, declarou ao El País que as autoridades não relacionam o caso de Haro com nenhum supertransmissor. “Houve ali muita gente durante dois dias, num espaço fechado, em Fevereiro, quando estava frio e as janelas estariam fechadas e numa época em que ainda se desconhecia a possibilidade de contágio”, diz.
Os especialistas e autoridades pedem ainda cautela na forma como se aborda a questão dos supertransmissores, sublinhando que pode haver uma tendência para estigmatizar os infectados como se fossem responsáveis pela pandemia, o que poderá ser até perigoso para o controlo da doença, ao fazer com que as pessoas infectadas tentem ocultar a sua infecção.
Por outro lado, a análise do perfil, ambiente e comportamentos dos supercontagiadores poderá levar a uma maior compreensão deste vírus e das suas formas de transmissão.