“Agora, quando sentimos o hálito putrefacto de [19]64, o bafio terrível de 68” — ouve-se a voz profunda do actor Lima Duarte, referindo-se aos anos da ditadura militar brasileira —, “agora, 56 anos depois (eu tenho 90, você [Migliaccio] com 85), quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais”.
É desta forma que o actor, que se notabilizou em papéis como Zeca Diabo (O Bem-Amado) ou Sinhozinho Malta (Roque Santeiro, em que contracenava com Regina Duarte, que detém actualmente a pasta brasileira da Secretaria Especial da Cultura), fala sobre a morte do colega de profissão, Flávio Migliaccio, na segunda-feira.
Lima Duarte denuncia a forma como os mais velhos estão a ser tratados num Brasil em que, à medida que o número de casos cresce, o surto pelo novo coronavírus tem sido desvalorizado pelo Presidente Jair Bolsonaro que, por várias vezes, considerou a morte de alguns, nomeadamente os mais idosos, inevitável, escarnecendo do isolamento.
O vídeo, que contém um emocionante desabafo de Lima Duarte, ao longo de quase cinco minutos, inundou as redes sociais e acabou por se tornar notícia.
Nascido a 29 de Março de 1930, numa aldeia do estado de Minas Gerais, Lima Duarte começou pela rádio até chegar a sua oportunidade no teatro, tendo integrado a companhia Arena (a que se refere no mesmo vídeo e onde Migliaccio deu os primeiros passos no mundo artístico).
Acabaria por ser escolhido para o elenco da primeira telenovela, seguindo-se uma carreira cheia de personagens marcantes: além dos já referidos, vestiu a pele de Sassá Mutema, em O Salvador da Pátria, de Murilo Pontes em Pedra Sobre Pedra ou de Viriato Palhares em Desejo Proibido.
Em Portugal, marcou presença no cinema: foi Major em Kilas, o Mau da Fita, de José Fonseca e Costa; António em O Rio do Ouro, de Paulo Rocha; e o padre António Vieira em Palavra e Utopia, de Manoel de Oliveira.
Flávio Migliaccio foi encontrado sem vida em sua casa, no dia 4, tendo deixado uma carta de despedida dirigida aos seus familiares.