Pandemia abriu caminho para pagamentos digitais. É a melhor opção?
Em Portugal, o online está-se a tornar uma opção mais popular e a recomendação é tocar o mínimo possível em notas e moedas. Mas há quem alerte para burlas e o fim da privacidade associada aos pagamentos em numerário.
Antes da pandemia da covid-19, já era fácil passar um dia a pagar coisas sem tocar em notas ou moedas, com muitos supermercados, restaurantes e serviços a permitirem pagar online, com cartão ou através de aplicações móveis que associam o número de telemóvel de alguém a uma conta bancária. Estas opções tornaram-se mais populares numa altura em que há estudos que mostram que o novo vírus pode sobreviver entre dois e três dias em materiais como metal, plástico ou papel.
“A pandemia da covid-19 levou a preocupações sem precedente sobre transmissões virais através de dinheiro físico”, confirma um relatório recente do Banco de Pagamentos Internacionais (BIS), que revela que instituições bancárias em todo o mundo têm reportado um aumento nas perguntas sobre a segurança dos pagamentos com moedas e notas.
Quando as pessoas não se dirigem aos bancos, as perguntas são feitas no Google: na semana de 15 a 21 de Março, com o aumento das medidas de isolamento social em todo o mundo, também as pesquisas globais no Google por “vírus e dinheiro” subiram a pique.
O BIS ressalva, no entanto, que “os cientistas têm notado que a probabilidade de transmissão através de notas é baixa quando comparada com outros objectos em que se toca frequentemente, como terminais de cartões de crédito”, e que o afastamento do uso de moedas e notas generalizado pode "pode criar divisões entre quem tem acesso e quem não tem acesso a pagamentos digitais”, particularmente indivíduos mais velhos ou sem contas bancárias.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que ainda não há evidências que confirmem ou neguem que a covid-19 pode ser transmitida através de numerário. “Não temos guias específicos no que toca aos pagamentos, mas como sempre recomendamos que as pessoas lavem regularmente as mãos”, lembra Tarik Jasarevic, porta-voz da OMS, em resposta ao PÚBLICO.
Desde o começo da propagação do novo coronavírus que lavar as mãos e não mexer na cara são as medidas de protecção mais mencionadas pela OMS, e devem ser privilegiadas no retorno à normalidade.
Ainda assim, o aumento da preocupação sobre dinheiro físico tem levado as instituições bancárias a emitir recomendações mais específicas. A Associação Portuguesas de Bancos (APB) pede que se privilegiem meios digitais, como os cartões bancários, particularmente com tecnologia contactless, que permite o pagamento de despesas com uma simples aproximação ao terminal de pagamentos. As sugestões foram repetidas pelo Banco de Portugal, e em meados de Março o Governo criou medidas para as facilitar, nomeadamente o fim das comissões no pagamento com cartões, independentemente do valor da compra.
Com isto, a SIBS, que gere a rede multibanco (usada por 95% dos portugueses), nota que a utilização de tecnologia contactless aumentou cinco pontos percentuais desde dia 24 de Março. Foi nesta altura que o limite máximo de pagamentos em Portugal passou de 20 para 50 euros, para facilitar pagamentos sem contactar com superfícies.
Os portugueses também têm optado mais por transacções online, com compras na área do entretenimento, cultura e subscrições através da Internet a subir 57% desde de o começo da crise de saúde pública até à terceira semana de Abril. Já a área do consumo alimentar e retalho registou um aumento de 44% de compras online.
“Os métodos de pagamento digital e sem contacto, além de serem cómodos e seguros, assumem particular relevância nesta fase, pois ajudam a reduzir o risco de contágio no sentido em que não há necessidade de contacto com superfícies e objectos onde outras pessoas tocam”, explica um porta-voz da SIBS, em declarações ao PÚBLICO, notando que a utilização da aplicação MB Way, que permite fazer comprar e transferências imediatas através do telemóvel ou tablet, também continua a aumentar para compras online e offline.
O problema das burlas
Muitas vezes os sistemas de pagamento digital são mais seguros, dada a existência de algoritmos que detectam, automaticamente, tentativas de fraude ou comportamento suspeito. Mas é preciso saber usá-los.
O Portal da Queixa tem registado em média 16 novas queixas de burla por dia desde o arrancar do primeiro estado de emergência devido à pandemia da covid-19. O alvo dos criminosos são pessoas que não sabem utilizar a aplicação: o atacante finge estar a vender algo online que tem de ser pago via MB Way e convence a vítima, que nunca usou o serviço, a introduzir o número de telemóvel do atacante no registo na aplicação no multibanco dando a este o acesso remoto à sua conta bancária.
A tendência levou o Ministério Público a lançar um alerta de cibercrime em Abril relacionado com a aplicação MBWay.
Pedro Lourenço, responsável pelo Portal da Queixa, relaciona o aumento das burlas com “a massiva migração dos seus hábitos de consumo para os canais digitais, sem o tempo necessário para uma aprendizagem.”
Para resolver a situação, o Portal da Queixa nota que já está a trabalhar numa plataforma, em parceria com outras entidades como o OLX Portugal e a SIBS, para potenciar o aumento da literacia digital dos consumidores portugueses.
Gigantes online na China aprenderam com a SARS
Não é a primeira vez que um vírus leva a mudanças nos hábitos de consumo das pessoas e a uma adaptação rápida de rotinas e hábitos. Em 2003, o SARS (Síndrome Respiratório Agudo Severo), que também começou na China, empurrou várias empresas no país para o comércio online e criou gigantes do negócio. Foi o caso das empresas JD.com e Alibaba, cuja história é contada pela analista de retalho online Digital Commerce 360.
Há 17 anos, a chinesa JD.com, era uma pequena cadeia de electrónica com 12 lojas físicas em Pequim. O objectivo do fundador Richard Liu era abrir mais 488 lojas, mas durante a epidemia da SARS os clientes deixaram de sair à rua e Liu foi obrigado a fechar quase todos os espaços.
Foi nesta altura que a empresa descobriu que fóruns e serviços de mensagens online eram um bom lugar para encontrar clientes e reorientou-se para as vendas via Internet. Numa fase inicial, os trabalhadores anotavam manualmente todas as encomendas, escreviam SMS personalizados aos clientes (não havia um programa de computador para o fazer), e até faziam as entregas.
A história da gigante de vendas online Alibaba é semelhante. Em 2003, a empresa apenas facilitava vendas entre diferentes negócios (B2B), mas durante a SARS desenvolveu um modelo de compras directas entre consumidores depois de uma trabalhadora ficar infectada e obrigar toda a empresa a ficar em quarentena e a perceber o potencial das compras online. O facto de muitos países emitirem avisos a desaconcelhar viagens de negócios à China, também empurrou muitas empresas ao site B2B da Alibaba.
Liberdade e compras anónimas
Surgem, porém, algumas preocupações com a redução do uso de moedas e notas. O Banco Internacional de Pagamentos destaca o potencial agravamento das desigualdades entre pessoas que têm e não têm acesso a pagamentos online: por exemplo, algumas pessoas não conseguem abrir contas bancárias porque não têm rendimentos estáveis, e há países onde as mulheres não conseguem abrir contas bancárias sem a autorização dos maridos. Mas há outras preocupações.
Um dos argumentos, popular mesmo antes da crise associada à covid-19, é que o numerário como meio de pagamento é essencial para uma sociedade aberta e livre. “É uma válvula de escape num mundo cada vez mais intermediado e vigiado”, escreveu Jerry Brito, presidente executivo da organização não-governamental Coin Center, num relatório sobre a importância de meios de pagamento privados. Regra geral, quando se paga com a câmara do telemóvel, ou através de carteiras digitais, cada compra é associada a um número de telemóvel, conta bancária, nome ou número de contribuinte.
Um ensaio recente sobre o potencial do dinheiro digital, incluindo divisas digitais, que foi publicado na revista científica World of Economics, desvaloriza o perigo.
“Pode-se argumentar que o numerário, especialmente em pequenos valores, é útil para fazer comprar anónimas”, escrevem os autores da Universidade de John Hopkins, nos EUA, e da Universidade de Tbilisi, na Geórgia. “De facto, a liberdade geral das populações não devia sofrer. Contudo, há várias soluções simples como um cartão presente anónimo.”
A proposta é criar cartões físicos ou digitais (tipo cartão presente), que não estão associados a uma pessoa específica e são carregados com crédito para pequenas compras que as pessoas não querem ver registadas. “Na era da Internet 5G, com tantos aspectos das nossas vidas a tornarem-se móveis e digitais, dinheiro em papel (para não mencionar moedas), parece arcaico”, reflectem os autores. “Levar numerário numa carteira não é mais seguro do que ter dinheiro digital num dispositivo móvel. Sim, um telemóvel pode ser roubado ou ficar perdido, mas o mesmo acontece com uma carteira.”
Para o Banco de Pagamentos Internacionais a actual pandemia “acentua a necessidade de se ter acesso a diferentes formas de pagamento”. Ainda assim, com o começo do retorno à normalidade, as principais recomendações da Organização Mundial da Saúde continuam a ser lavar regularmente as mãos, seja para mexer em dinheiro físico ou em terminais de pagamento.