Quando se sai de um amor, também é preciso lavar as mãos
Quando se sai do amor, também é preciso lavar as mãos. As mãos saem sempre sujas porque, no final, é quase inevitável tocar onde não se devia, devassar o mais valioso, escarafunchar no terrível
Ninguém deixa de amar de um dia para o outro, mas acontece que, a determinada altura, como quem descasca uma laranja e a vai comendo gomo a gomo, esgota-se o fruto. O problema é pensarmos que o fruto é infinito, e sermos surpreendidos — embora seja previsível — quando comemos tudo de uma vez e deixamos de ter gomos e sumo. Nada resta, a não ser as mãos sujas que temos de lavar, como Pilatos.
Quando se sai do amor, também é preciso lavar as mãos. As mãos saem sempre sujas porque, no final, é quase inevitável tocar onde não se devia, devassar o mais valioso, escarafunchar no terrível. O fim do amor é violento e sujo. É claro que novas estações virão para amenizar as memórias rudes, e outras primaveras acabarão por surgir, com novos frutos pendentes das árvores. Mas enquanto não vem uma nova estação, vai-se lavando as mãos com calma, num esforço inútil para que voltem a ser imaculadas. E ter a paciência sobre-humana de quem fica a ouvir crescer o pêlo da alcatifa. Não há milagres, só na Bíblia.
Pôncio Pilatos condena Jesus à morte e lava daí as suas mãos, fazendo recair a culpa sobre a população. Também os amantes condenam o amor à morte e lavam daí as suas mãos mas, ao contrário de Pilatos, não há hierarquia nem culpa. Não há responsabilidade a atribuir a ninguém, a culpa é sempre partilhada e fictícia, porque não há culpa nenhuma.
Os amantes partilham com Pilatos apenas a condenação à morte do amor (mesmo que inconsciente) e o lavar das suas mãos. Também outras partes do corpo terão de lavar — a língua, o sexo e, sobretudo, os olhos. Embora, como sabemos, a água não sirva de antídoto de saneamento a estas peças do corpo. Com fé e fortuna, um novo amor irá purificar quase tudo, nomeadamente o amor próprio.