Lar do Comércio pede “ajuda” a Autoridade de Saúde. Quadro é de “bastante gravidade”
Após uma semana a dizer que cumpria todas as regras de segurança e segregação e depois de vistorias mostraram o contrário, lar de Matosinhos pediu ajuda à Autoridade de Saúde Local. Bombeiros entraram no espaço este domingo para tomar medidas. Há pelo menos 85 infectados e seis mortos. Assessora do lar demitiu-se e fala de “omissão, grave, de factos e números de infectados e mortes”
Ao final da tarde de sábado, a direcção do Lar do Comércio, em Matosinhos, “pediu ajuda à Unidade de Saúde Pública para mobilizar utentes dentro da instituição” e conseguir fazer a separação entre doentes com covid-19 e utentes saudáveis. A informação foi dada por José Pedro Rodrigues, vereador da Protecção Civil da Câmara de Matosinhos, que a meio da tarde deste domingo entrou no lar com quatro corporações de bombeiros e 25 operacionais que ajudarão a pôr este plano em acção.
O “quadro é de bastante gravidade”, apontou o vereador, informando que há pelo menos 60 utentes e 25 trabalhadores infectados com coronavírus. O número de vítimas, não quis adiantar, deixando essa responsabilidade para a Autoridade de Saúde local. Mas a autarquia já antecipava, desde sexta-feira, o crescimento do problema. Serão seis as vítimas mortais.
O pedido de ajuda pedida agora pela direcção do lar vem tarde? “É evidente que sim”, respondeu aos jornalistas à porta da instituição, onde se juntaram também vários familiares de utentes, alguns sem notícias sobre o estado de saúde de quem está lá dentro. Há quem garanta estar já a preparar fazer uma queixa-crime contra a instituição.
Nenhum utente será retirado do lar, informou o vereador, explicando que estes serão agora organizados em função do seu estado de saúde: “Vão ser colocados em espaços distintos, com distâncias de segurança em função das determinações da unidade de saúde pública.”
Omissões graves levam a demissão de assessora do lar
De tudo isto terá sabido a assessora de comunicação do Lar do Comércio, Isabel Damião Chumbo, apenas pela comunicação social. E, por isso mesmo, apresentou ao final desta tarde a sua demissão, “decisão irreversível”, batendo a porta com estrondo. “Houve clara omissão, grave, de factos e números de infectados e mortes pela covid-19, pela direcção da instituição, na pessoa da Dra. Marta Couto Soares, diretora d’ O Lar do Comércio”, assume numa nota enviada ao PÚBLICO. As acções da direcção, continua, levaram-na, enquanto representante da comunicação do lar, a induzir “em erros grosseiros a comunicação social”.
A Segurança Social contratou mais 17 profissionais para o Lar do Comércio. Estes estiveram em formação este sábado e “estão prontos a entrar ao trabalho”. A escassez continua, ainda assim, a ser real. Há, neste momento, dois enfermeiros a cuidar dos 203 utentes que estão na instituição, mas José Pedro Rodrigues diz que a Segurança Social deverá também reforçar essa resposta.
Na sexta-feira, quando uma segunda vistoria foi feita ao Lar do Comércio, a direcção da instituição garantia que todos os idosos estavam em isolamento nos seus quartos, admitindo que num edifício grande como era “difícil chegar a todos em tempo útil e eficazmente”. O PÚBLICO questionou novamente a direcção do lar criado em 1936 sobre a situação actual do lar – nomeadamente sobre a razão pela qual só este sábado foi pedida ajuda à Autoridade de Saúde Local, quando já uma vistoria no início do mês tinha detectado problemas e a segunda visita voltou a reforçar a existência dessas falhas –, mas não obteve resposta. A assessora de comunicação acabaria por se demitir horas depois.
“O que está a acontecer aqui é um crime”
Passava pouco das 15 horas e Rosa Xavier já estava à porta do lar. De máscara e luvas, olhava o edifício da instituição onde a mãe está desde Outubro e não escondia a angústia apesar de, tanto quanto sabe, o teste ao SAR-Cov-2 que a progenitora fez ter sido negativo. “O que está a acontecer aqui é um crime. Nem sequer tratam os utentes com dignidade”, queixava-se. A mãe, com 85 anos e dependente, está sozinha no quarto desde que a utente com quem partilhava o espaço foi retirada, contou-lhe a própria num dos telefonemas possíveis dos últimos dias. “O teste dessa senhora deu positivo. Ela foi retirada do quarto. Mas a roupa dela continua lá, não fizeram qualquer limpeza ao espaço”, acusa.
Pelas 15h30, oito veículos de quatro corporações de bombeiros chegaram ao espaço. No parque de estacionamento, enquanto os operacionais se equipavam dos pés à cabeça, iam chegando mais familiares à porta. Das varandas e janelas do lar, alguns idosos espreitavam o cenário apocalíptico.
António Oliveira conseguiu ver o pai de 87 anos. “Falamos com ele todos os dias”, conta, perdendo a voz à emoção. Mora perto do lar e mantém o contacto com o progenitor por telemóvel. “Ele sente-se bem, não tem sintomas. Mas a gente não sabe…” Já fez teste ao novo coronavírus na passada quarta-feira, mas até agora ninguém lhe comunicou o resultado.
A ida à instituição é rotina diária para José Neves, antes e durante a pandemia. A sogra de 97 anos vive ali há alguns anos e ele cumpre uma “dívida de gratidão” com ela. Quando a mulher faleceu, eram os dois filhos ainda pequenos, foi a sogra quem o ajudou a criá-los. “Nunca me esquecerei disso”, conta, entre a emoção e a revolta com a situação.
As queixas não são de hoje. “Falta de limpeza, baratas nos quartos, elevador avariado. É uma lista sem fim”, acusa José Neves. O silêncio da direcção do lar é para ele a “demonstração da arrogância e prepotência que sempre tiveram”. Só este sábado, depois de protestos à porta da instituição, lhe deram a informação de que o teste da sogra teria sido negativo. Mas o aperto no peito não desapareceu: a senhora com quem dividia o quarto é uma das vítimas mortais confirmada – “a gente sabe lá se dizem a verdade...”
Isso mesmo quis dizer ao vereador da Câmara de Matosinhos quando o viu falar com os jornalistas. “Já contactei o meu advogado e vou pôr uma queixa-crime contra a Marta Soares, [directora do lar]”. José Pedro Rodrigues dizia compreender a angústia e garantia que a autarquia já tinha também sensibilizado o Lar do Comércio para esse problema também. A garantia que lhe deram, contou aos familiares, é que uma assistente social passará a estar no espaço para contactar com os familiares.
Para António Leite, seria certamente o conforto possível no meio do caos. A irmã de 90 anos está infectada com covid-19 e a informação dada é escassa. Um enfermeiro, conta, terá começado por lhe dizer que a utente estava “assim-assim” e só mais tarde admitiu ter sido contagiada. Estará “assintomática”, dizem-lhe. “Nem sei se está a ser bem tratada e acompanhada”, lamenta. Ermínia Santos Leite, a esposa de António, não poupa o lar de responsabilidades. Imaginar a aflição da cunhada entre aquelas paredes emociona-a e revolta-a. “Ela é sócia do lar há 55 anos, paga 970 euros por mês e é tratada assim. Parece que não têm sentimentos.”