“Estamos a falar de 12 zeros para o plano de recuperação”

Definido o plano de emergência, falta o plano de recuperação. Numa entrevista exclusiva ao PÚBLICO, Mário Centeno deixa pistas para as decisões que cabem ao Conselho Europeu de quinta-feira.

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Quando o ministro das Finanças foi escolhido, há dois anos, para presidir ao Eurogrupo, nada faria supor que estaria no cargo durante aquela que é a maior crise da história da integração europeia. A sua missão é de conseguir arrancar, mesmo que seja a ferros, consensos entre os seus pares europeus, para que a resposta à crise pandémica seja o mais eficaz possível no que toca aos seus efeitos económicos e sociais. Admite que o último mês foi vertiginoso. Insiste em que as medidas de emergência aprovadas na última reunião do Eurogrupo foram as necessárias e são todas elas inovadoras. Falta o mais difícil: desenhar o plano seguinte, de reconstrução da economia europeia e que aqui as divisões são maiores. Definir a ambição desse plano e a forma de financiá-lo depende do Conselho Europeu da próxima quinta-feira. É aqui que entra a questão da emissão de dívida conjunta ou a necessidade de voltar a pôr a funcionar o Mercado Único. Centeno fala de um valor com “12 zeros”. Ou seja, biliões. E acredita que prevalecerá, entre os líderes, o espírito europeu.

Estou a entrevistá-lo na sua qualidade do presidente do Eurogrupo, o que faz bastante sentido, porque o nosso futuro depende, em grande medida, do que acontecer na Europa. Suponho que concorda...
Sim, estou de acordo.

Mais até do que a nossa própria capacidade e a dos outros países para enfrentar esta pandemia...
A resposta dependerá sempre das duas. Mas, desta vez, a Europa é a nossa primeira linha de defesa comum e creio que esse sentimento está instalado dentro da própria União Europeia.

Mesmo que às vezes não pareça...
Sim, às vezes não parece. Mas, para distinguirmos aquilo que parece daquilo que está realmente a acontecer, temos de tentar perceber a vertigem que foi este mês para os Governos, os Estados, as nossas comunidades e instituições, e ver a rapidez com que reagimos.

Mais talvez a nível nacional…
A nível nacional e, também, numa primeira fase com alguma hesitação, a nível europeu. Não estou de modo nenhum a negar isso. Estive, aliás, presente em todos esses momentos de hesitação. Mas quando foi necessário começar a construir soluções, elas apareceram, não só com rapidez, mas com uma intensidade sem paralelo em nenhuma crise anterior. Costumo usar um paralelo, que creio que é bastante entendível. A crise de 2008-2009 foi, digamos assim, pré-anunciada pelo menos com dez anos de antecedência. Muitos analistas, académicos, políticos, economistas, anunciaram-na mil vezes até ao dia em que aconteceu. E quando aconteceu, a resposta foi tímida, nalgumas dimensões porventura mesmo errada, e levámos quase quatro anos até colocarmos…

Na Europa, porque os Estados Unidos foram muito mais rápidos...
Estou a falar da Europa, exactamente. Levámos mais de quatro anos, com uma crise das dívidas soberanas pelo meio, até começar a encontrar um caminho que pudesse fazer algum sentido. Desta vez, esta crise não foi anunciada. É uma crise que só conseguíamos imaginar num cenário de ficção. Levou-nos dez dias, entre a primeira reunião do Eurogrupo em que a solução começou a ser desenhada e a sua aprovação final. E é só o primeiro passo, como já referi.

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Ainda falta o plano de reconstrução. Este é só de emergência. Mesmo assim, essas decisões sabem a pouco. Sobretudo, se compararmos a retórica dos responsáveis políticos, que descrevem esta crise como a pior desde a II Guerra ou igual à Grande Depressão de 1929-33, e as medidas que parecem dispostos a tomar. Além disso, calculo que tenha tido de arrancá-la a ferros no Eurogrupo...
O que é que fizemos para responder a esta crise em termos económicos e sociais? Instituímos um conjunto de medidas de protecção ao emprego que foram adaptadas às realidades nacionais. O nosso lay-off simplificado, o “Kurzarbeit” alemão, o “chomage partiel” francês, entre outros, têm todos os mesmos objectivos: proteger o emprego. Para conseguirmos isso, queremos que haja um certo level playing field na resposta. Para isso, precisamos de dotar os Estados com liquidez para poder financiá-la. É aqui que entra o SURE [um plano de solidariedade com 100 mil milhões de euros], que é dinheiro novo, que vem de garantias que todos os Estados prestam à União Europeia para que ela possa obter aqueles montantes financeiros, que depois empresta aos Estados que enfrentam custos de financiamento mais elevados​.

O mesmo processo se passa com o Banco Europeu de Investimentos (BEI). Estamos a falar de garantias dadas pelos Estados que depois permitem ao BEI conceder empréstimos até 200 mil milhões de euros, sobretudo às PME.

Qual é o objectivo desse dinheiro?
É permitir aos diferentes Estados desenvolver uma linha de acção equivalente para as empresas terem acesso a liquidez. Todos sabemos que alguns Estados têm bancos promocionais para esse fim, outros não têm. O BEI é um equalizador da resposta. Mais uma vez, estamos a falar de liquidez e de empréstimos, mas, neste caso, potenciais perdas serão mutualizadas. E a probabilidade de haver perdas é mais elevada porque estes são empréstimos com risco elevado. 

A terceira linha é o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), que é uma rede de segurança. Tornámos a linha de credito do MEE acessível a todos, sem as pré-condições de acesso…

Desde que seja para despesas, directas ou indirectas, com a saúde...
Para tratamento e prevenção. O que tem uma latitude interpretativa suficiente para que todos os Estados tenham uma rede de segurança. É para isso que aquele dinheiro serve – para evitar que os Estados percam acesso ao mercado. As linhas do MEE permitem que haja uma protecção das dívidas soberanas face ao acesso ao mercado.

Estamos a falar de uma rede de protecção, sem condicionalismos, sem troikas, sem programas de ajustamento, para que os Estados possam aceder a financiamento com custos equiparáveis entre todos.

Qual é a soma disto tudo? Era aí que queria chegar para comparar com os EUA. Até à data, a resposta orçamental dos Estados-membros soma cerca de 3% do PIB da UE. Estamos a falar de mais de 500 mil milhões de euros.

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Uns mais e outros menos. A Alemanha, por exemplo, atinge valores astronómicos porque pode...
A Alemanha distingue-se particularmente nas linhas de crédito. As linhas de crédito já anunciadas em todos os Estados-membros atingem cerca de 16% do PIB. Estamos a falar de qualquer coisa como 2,5 biliões e, como vê, estamos a aproximar-nos dos americanos. E, depois, temos o BCE, que, desta vez, não levou muito tempo a reagir, antes pelo contrário, e cuja magnitude de reacção não é muito diferente da de outros bancos centrais. Estamos a falar de 750 mil milhões de euros, com algumas novidades no seu novo programa, que lhe dão maior flexibilidade para actuar nos mercados secundários.

Por exemplo, não há limites para nenhum país... 
O BCE esclareceu que poderá desviar-se dos limites, mesmo que temporariamente, se esses limites impuserem um obstáculo à implementação do programa de compras e comprometerem os objectivos de política monetária. E isso permite uma resposta muito significativa.

Esta é a fase da emergência. Falta a parte da reconstrução. O último Eurogrupo não avançou grande coisa sobre as características desse plano. E o senhor já referiu que o Eurogrupo está à espera de instruções claras do Conselho Europeu da próxima quinta-feira para poder trabalhar a partir daí. Também sabemos que as divergências entre os Governos são maiores neste capítulo...
Sim, as divergências ainda existem. Antes de chegar a um consenso, há sempre divergências. Mas deixe-me tentar clarificar o que se diz sobre isso no meu relatório do Eurogrupo, sobre um fundo de recuperação, que deverá jogar em complemento com o Quadro Financeiro Plurianual, o que também está referido nesse relatório. É tudo isto que faz, no seu conjunto, o verdadeiro plano de recuperação, que a presidente da Comissão e o presidente do Conselho Europeu têm agora a responsabilidade de preparar.

E o que é que já se sabe do fundo de recuperação?
O que já está assente e que ficou expresso no parágrafo que o relatório lhe dedica. É um fundo que possibilita uma repartição dos custos do período de recuperação ao longo do tempo. Tem que ter mecanismos de financiamento próprios, apropriados e inovadores. Está aqui traduzido o facto de haver várias posições diferentes sobre este problema. Temos a proposta francesa que, na verdade, inclui a emissão de dívida comum.

Para financiar o fundo, não os países...
Para financiar o fundo. E temos outros países que, neste momento, vêem o fundo mais a funcionar dentro do Quadro Financeiro Plurianual. Mas as duas visões não se excluem mutuamente. Mesmo que, indirectamente, o fundo seja usado para reforçar os programas do orçamento da UE.

O próximo orçamento da União Europeia, ainda a ser discutido, prevê um montante de 1% do Rendimento Nacional Bruto e, mesmo assim, tem sido difícil. Isto não significa grande coisa...
Espero não estar a extrapolar demasiado, mas todos têm noção disso e todos têm também a noção de que o que é necessário, desta vez, é ter disponível algo de grande dimensão. Mas a dimensão da solidariedade já lá está, nesse parágrafo, traduzida no compromisso de prolongar ou distribuir ao longo do tempo o custo financeiro, que será muito concentrado no período de recuperação imediato.

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Como é que se dissolve num tempo longo esse esforço financeiro de cada país e como é que se evita que os mercados financeiros tenham uma percepção distinta da capacidade de cada um, sem o recurso à emissão de dívida conjunta?
Essa é a resposta que estamos todos à espera que o Conselho Europeu dê.

Na próxima quinta-feira...
Exactamente. Estamos a falar do apoio à recuperação. A minha interpretação é que esse período de recuperação se inicia assim que começarmos a reverter de forma significativa as medidas de confinamento. O que quer dizer que não temos muito tempo. Mas temos o tempo suficiente para que haja esse debate ao nível do Conselho Europeu.

Diz que são precisas soluções inovadoras. Na semana passada, os investidores começaram a vender em grandes quantidades dívida pública de Itália, Espanha, Grécia e Portugal, colocando pressão sobre as taxas de juro com que esses países se endividam, apesar da intervenção do BCE. Como é que garante a esses europeus, em particular, que esta crise não vai ter para eles um desfecho igual à anterior?
São várias perguntas. Vou começar pela inovação, que me parece a parte mais interessante. Mas já iremos à última parte da sua pergunta.

Quando, no início deste mês de grande trabalho, começámos a delinear possíveis respostas, quando me começou a ser descrito o mecanismo de linha de crédito do MEE, confesso que o meu pensamento foi: vamos andar meses em torno disto até conseguir fazer com que funcione. Na verdade, foram apenas precisos dez dias. Porque fomos capazes de transformar a natureza do MEE e das linhas de crédito que estamos a usar em relação ao que havia durante as crises soberanas – quando o mecanismo foi criado. Neste novo contexto, que é simétrico, em que não há razões para voltar aos velhos debates sobre os estigmas, as linhas de crédito estão disponíveis para todos e não trazem associado esse peso da condicionalidade. Inovámos.

Acha que não há estigma nestas linhas de crédito do MEE?
Acho que são um mecanismo de protecção e de segurança que é muito útil. Estando à disposição mais de 400 mil milhões de euros no MEE, seria paradoxal que não os pudéssemos utilizar, a não ser associando um enorme estigma. Foi esse o grande passo que demos. Não estou a dizer, com isto, que pense que é muito ou pouco provável que os países utilizem esta linha. Estou a dizer que, no mundo financeiro, a existência desta protecção tem um valor que vai muito para além do seu valor nominal.

Falta o plano de reconstrução...
O apelo que agora é feito à inovação neste último passo – o da recuperação – não é novo. Não devemos ficar muito ansiosos, portanto, face à capacidade para inovar também aqui. Estou muito confiante e muito seguro de que essa resposta vai aparecer. As forças que têm permitido construir a Europa vão estar presentes nesta discussão e vão levar-nos a um porto seguro.

A resposta não se limita, desta vez, à União Económica e Monetária (UEM), embora ela seja uma enormíssima responsabilidade dos Estados-membros. No último Eurobarómetro, o euro estava nos máximos de apreciação no conjunto dos países da UEM — muito, muito acima dos níveis registados no momento em que foi criado. E muito, muito acima do ponto mais crítico da última crise. É um activo que os decisores políticos têm de valorizar.

Mas não estamos apenas a proteger a UEM. Estamos também a proteger o Mercado Único, porque é disso que se trata fundamentalmente. Parámos as nossas economias.

Nós somos uma pequena economia aberta, mas há economias na Europa ainda mais abertas que a nossa. 75% das nossas exportações são para o Mercado Interno. Há países em que este número ainda é maior. As nossas exportações representam 45% do PIB, mas há países em que esse número é mais elevado. Portanto, o Mercado Único…

É vital para toda a gente?
É vital para todos. O Mercado Único, e a forma como funciona, foi uma extraordinária forma de mutualização das nossas decisões económicas. A especialização económica de Portugal no contexto europeu, ou da Bélgica, ou dos Países Baixos, ou da Itália traduz uma partilha – a origem da palavra mutualização – económica enormíssima.

Esta é uma crise simétrica que inevitavelmente vai levar a que todos os países fiquem com mais dívida no curto prazo e que enfrentem, no segundo trimestre de 2020, uma recessão verdadeiramente avassaladora. Os velhos livros pelos quais nos regíamos já não nos servem neste período – talvez nos possam voltar a servir lá mais para a frente. A resposta que temos de dar tem de ser enquadrada nesta nova realidade.

É por isso que acha que vai haver seguramente alguma inovação… 
Também sobre o que é preciso para financiar, de uma maneira homogénea, a reconstrução.

A emissão de dívida conjunta para a reconstrução não seria o que foi o “whatever it takes” de Mario Draghi no Verão de 2012? Uma forma de dizer aos mercados, com total clareza, que estamos, efectivamente, todos no mesmo barco?
É, com certeza. Mas é preciso que se entenda que tem o mesmo valor económico e está no mesmo quadro de análise do Mercado Único, quando dizemos que temos de o proteger enquanto um dos maiores mercados do mundo.

A França tem uma proposta para o Fundo de Reconstrução. O Presidente Macron disse, na sexta-feira passada, ao Financial Times, que esse fundo deveria ter uma capacidade mínima de 400 mil milhões de euros, cobertos pela emissão de dívida garantida pela União Europeia...
Já ouvi números maiores noutro contexto. Um dos vice-presidentes da Comissão, Valdis Dombrovskis, já falou em 1,5 biliões. Esse fundo terá de ser proporcional aos danos desta crise. Podemos hoje fazer uma estimativa, mas só conseguiremos ser rigorosos quando começar a haver alguma visibilidade para o início desse processo de reconstrução.

O valor que o Presidente francês referiu não é incompatível com o valor mencionado pelo vice-presidente da Comissão. Podemos ter um misto de mecanismos de apoio, em parte financiados por empréstimos com alavancagem, em parte financiados por dívida comum.

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Haverá, portanto, vários instrumentos?
Sim. Acharia perfeitamente natural que assim fosse e que também permitisse aos países poderem utilizar de uma maneira ou de outra essas ajudas.

Voltando à ideia do Mercado Único, que é muito querida a todos os países…

Norte e Sul…
Centro e periferia… Para recuperar o Mercado Único, vamos precisar de investir nesse mercado. E, sem recuperar esse grande mercado, as economias não vão a lado nenhum. Não vão, de todo. Tudo isto vai ser tomado em conta. Precisamos de definir alguns princípios e ter algumas certezas sobre qual o processo que vamos seguir. É preciso saber que há um mecanismo de coordenação crucial na Europa, tão crucial como o financiamento, que é retomar o funcionamento do Mercado Interno. É tendo tudo isto em conta, com a definição de uma estratégia de saída, que podemos definir o montante que é necessário para financiar as economias e quais são os mecanismos de financiamento desse montante numa base de solidariedade e de inovação. Está lá tudo, naquele parágrafo [do relatório do Eurogrupo].

Inovador, solidário, mas acho que também li a palavra “temporário”.
Sim, é temporário no apoio, mas deve ser suficientemente longo nas maturidades em que esse apoio é depois ressarcido, para não comprometer a mobilização de recursos para a recuperação.

Na entrevista que deu a vários outros jornais europeus, também falava de “trillions”, os nossos biliões. É disso que estamos a falar?
São 12 zeros. As nossas calculadoras dos telemóveis não dão para introduzir esses números. Só calculadoras científicas conseguem lidar com 12 zeros.

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