A urgência de acompanhar os que ficam à margem da covid-19
O foco dominante na covid-19 tornou-se quase obsessivo e em muitos casos assistiu-se a um certo vazio da resposta institucional às doenças crónicas, sem planos alternativos visíveis.
A epidemia pelo novo vírus SARS CoV-2 apresenta características distintas que se sumarizariam nos seguintes pontos: letalidade moderada em termos médio, mas elevada em grupos de risco (sobretudo idosos, diabéticos e portadores de doença cardiovascular ou respiratória), transmissão por gotículas e permanência prolongada em superfícies e mesmo no ar, potencial contágio a partir de pré-sintomáticos e rápida disseminação que, em pouco tempo, atingiu características de pandemia. Na altura que escrevo estas linhas, a doença covid-19 atingiu quase dois milhões de pessoas, provocando a morte a mais de 100.000 em todo o mundo. Com tempos de reação e estratégias diversas, os países, as organizações e as pessoas adotaram mecanismos tendentes a conter o flagelo e, no mínimo, não permitir o colapso dos sistemas de saúde perante uma necessidade de resposta inusitada.
Numa fase inicial, os sistemas reagiram focando-se em evitar a todo o custo o contágio intrainstitucional condicionando e encerrando a atividade programada, como parte de estratégias de proteção que envolveram a criação de circuitos e espaços paralelos, com consequente rearranjo logístico.
Apesar da catástrofe pandémica, as outras doenças não desapareceram nem ficaram entre parêntesis e alguns indicadores recentes são altamente preocupantes. Entre eles, a diminuição marcada das urgências hospitalares, pese embora poder refletir uma procura histórica exagerada, pode associar-se a uma atitude de tão grande reserva no pedido de ajuda aos serviços de urgência que envolva também situações graves. O enfarte do miocárdio não se encontra, definitivamente, dentro da lista das chamadas falsas urgências e a diminuição verificada de mais de 25% de intervenções coronárias em fase aguda de enfarte do miocárdio (em comparação com os anos precedentes) pode significar uma desproporcionada retração dos doentes, com potencial aumento do risco de morte ou de evolução para futura insuficiência cardíaca.
As sociedades científicas e as autoridades, têm multiplicado os apelos à permanência em casa, mas também a que a ajuda emergente deva ser pedida em caso de sintomas agudos (dor no peito, falta de ar aguda ou perda de consciência).
A recomendação generalizada de evitar contacto social e a permanência em casa dos mais vulneráveis inclui também o isolamento dos portadores de doenças crónicas que ficaram privados dos mecanismos habituais de acompanhamento clínico, com o cancelamento de consultas médicas, exames diagnósticos e terapêuticas consideradas não urgentes e adiáveis. O foco dominante na covid-19 tornou-se quase obsessivo e em muitos casos assistiu-se a um certo vazio da resposta institucional às doenças crónicas, sem planos alternativos visíveis. Muitos doentes e seus familiares confrontaram-se com verdadeiras muralhas de silêncio, geradoras de ansiedade, que somadas à consciência de vulnerabilidade e risco roçaram não poucas vezes o pânico.
Ao sentimento de solidão, somou-se a sensação de um certo abandono à sorte de cada um. As múltiplas tentativas de contacto por parte de doentes e famílias, por meios diretos e indiretos, espelham bem o sentimento de insegurança fundamentado na fragilidade inerente à situação clínica. De facto, situações como a insuficiência cardíaca apresentam uma taxa de mortalidade histórica (sem os medicamentos atuais) bem superior à da covid-19 embora menos aterradora porque menos visível e mais distribuída no tempo. Os internamentos por insuficiência cardíaca descompensada têm vindo a crescer em Portugal (20% ao ano), ocupam o primeiro lugar entre as causas de internamento por doenças do aparelho circulatório e estão associados a elevada letalidade (quase 19000 casos com mais de 2300 mortes em 2016). Os doentes com insuficiência cardíaca merecem uma atenção muito especial e um acompanhamento personalizado e diferenciado. É muito preocupante que o acompanhamento esteja a ser interrompido durante a pandemia levando a uma maior morbilidade e mortalidade nessa área, que pode competir, embora de forma mais silenciosa, com a mortalidade por covid-19.
A responsabilidade médica de cuidar dos doentes foi sentida desde o primeiro instante, disponibilizando contactos e facilitando a interação pessoal o que, todavia, se mostrou manifestamente insuficiente. A resposta institucional passou pela implementação ou incremento de sistemas de teleconsulta, tornados possíveis pelas novas tecnologias de comunicação. Estes sistemas, desejavelmente fornecedores de suporte aos doentes mais graves, tropeçam em diversos obstáculos como a garantia de equidade e universalidade, uma vez que o seu funcionamento em condições otimizadas exige recursos técnicos nem sempre disponíveis para os mais pobres ou mais isolados e solitários. No entanto, a generalização do uso do telemóvel, mesmo sem acesso à Internet, permite o estabelecimento de uma ponte médico-doente que não sendo a ideal é a possível e que permite algum acompanhamento dos doentes.
Existem animadoras experiências de monitorização à distância de doentes crónicos e, uma vez mais, a insuficiência cardíaca é o modelo paradigmático de sucesso. Tal como no filme eterno de Francisco Ribeiro O Pátio das Cantigas, onde a mensagem tem que chegar à D. Rosa por qualquer meio – em mão, por telefone ou mesmo por pombo correio - também em tempo de isolamento social a ligação e a comunicação entre o médico, a instituição e o doente tem que se manter por quaisquer meios possíveis, de forma a evitarmos males menores. O abandono dos tratamentos de doenças crónicas conduz inexoravelmente ao seu agravamento, com incomensurável custo adicional para o sistema de saúde (aumento dos internamentos por agudização, para apenas citar esse parâmetro) e potenciais consequências pessoais de degradação clínica ou mesmo de morte antecipada.
É indispensável manter o acompanhamento médico dos doentes crónicos e é urgente restabelecer pontes e ligações perdidas durante a atual fase de isolamento de forma a garantir a continuidade dos cuidados e das terapêuticas. O seguimento à distância é possível em muitos casos e naqueles em que o exame físico e a realização de testes diagnósticos sejam indispensáveis, têm que ser proporcionadas as condições de segurança para que o acompanhamento médico dos doentes prossiga sem roturas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico