Ovar já deitou foguetes, mas ainda há muito para fazer no combate ao coronavírus
Ministro da Administração Interna visitou a cidade no primeiro dia depois do levantamento da cerca sanitária. E reforçou que as medidas que se aplicam aos munícipes vareiros são mais restritivas do que as que vigoram no resto do país.
À meia-noite de sábado, quando as primeiras barreiras físicas que limitavam as entradas e saídas em Ovar começavam a ser levantadas na sequência da determinação do Conselho de Ministros, estouraram foguetes em algumas das oito freguesias do município. Não seria caso para tanto, visto que, depois de um mês de uma cerca sanitária que isolou o concelho do resto do país, as restrições à circulação continuam, mas Adélia Silva e Rui Santos (não, não foram eles que deitaram foguetes…) também sentem que têm pelo menos um motivo para festejar.
Na segunda-feira, este casal de Esmoriz poderá regressar ao trabalho. Ambos com 40 anos – na verdade, Adélia só os completa no dia 28, “que bela maneira de entrar nos 40”, sorri –, estão há um mês em casa, “a olhar para as paredes”, como diz Rui, que não esconde que estes dias “têm sido frustrantes”. Trabalha numa fábrica de escadotes em Rio Meão, no vizinho concelho de Santa Maria da Feira, e desde 18 de Março, quando o cerco foi imposto à volta de Ovar, que ficou impedido de aceder ao posto de trabalho. Adélia também: é funcionária de uma fábrica de rolhas de cortiça em Oleiros, igualmente na Feira.
Nestes dias de confinamento, ele apenas saiu para ir às compras, ela para passear “as duas cadelas perto de casa”. Agora que o cerco foi levantado, ambos salientam que o mais importante é poderem regressar “à rotina do dia-a-dia”. “O facto de termos o nosso local de trabalho à nossa espera já é menos uma dor de cabeça”, considera Adélia. O resto “vai-se indo e vai-se vendo”. “Agora é importante que as pessoas do concelho de Ovar percebam que ainda não podem ter a sua vida normal”, diz.
Na cidade de Ovar, a manhã de sábado acordou soalheira no primeiro dia pós-cerca sanitária. Pelas 10h, na zona conhecida como Habitovar, viam-se as filas habituais em frente à Padaria Charlot e ao talho vizinho. No centro da cidade, o cenário era idêntico nos supermercados Novo Horizonte e Vieiras, na Padaria Flor d’Ávila ou na Farmácia Zagalo.
Helena Almeida, que há 16 anos deixou o Estoril para se fixar em Ovar porque se casou com um vareiro, chega de mota à Casa Alentejana, que vende vinhos, queijos, azeites, frutas, enchidos e compotas. Em conversa com o PÚBLICO, conta que tem saído de casa “todos os sábados de manhã para fazer compras”. Hoje, nota, já se sente “um pouco mais de movimento nas ruas”. “Pode ser a acção psicológica a funcionar”, comenta, embora ressalve que sabe perfeitamente que as restrições continuam. “A única coisa que se alterou foram as entradas e as saídas no concelho e as paragens dos comboios. De resto, dá-me até a sensação que as forças de segurança vão controlar mais.”
Praia do Furadouro deserta
De certa forma, Helena antecipou as palavras do ministro da Administração Interna, que na manhã de sábado visitou Ovar para agradecer “olhos nos olhos” aos que foram “verdadeiros heróis nesta batalha”. Aos jornalistas, já depois de ter assistido à reunião diária do gabinete de crise local, Eduardo Cabrita, equipado com uma viseira personalizada, adiantou que o município manter-se-á debaixo de uma “monitorização muito intensa” e que, nalguns casos, o trabalho das forças de segurança poderá até ser “alargado”.
A intervenção da PSP e da GNR, revelou o ministro, poderá ser “mais exigente e sofisticada”, de forma a “garantir o cumprimento estrito das regras de distanciamento” necessárias para conter a propagação do novo coronavírus – principalmente durante o fim-de-semana de bom tempo que se perspectiva. Já na sexta-feira, Salvador Malheiro, presidente da Câmara Municipal de Ovar, deixara na sua página de Facebook o aviso: se for necessário, a autarquia cortará o acesso às praias, marginais e passadiços. Ao início da tarde de sábado, a Avenida Central do Furadouro e respectiva marginal estavam praticamente desertas, constatou o PÚBLICO. Pelo menos aqui, numa das mais frequentadas praias do concelho, a ordem de recolhimento estava a ser levada à letra.
Eduardo Cabrita recordou ainda que o decreto-lei que regulamenta a terceira fase do estado de emergência nacional tem um artigo especialmente dedicado a Ovar e nele se explicitam medidas mais restritivas para os munícipes. Que podem apenas circular na via pública para a aquisição de bens essenciais ou para se deslocarem a serviços postais, bancários ou de seguradoras; para irem ao médico ou apoiar familiares; ou para irem trabalhar – mas ainda assim têm de estar munidos de uma declaração da entidade empregadora.
“Ó freguesa, é do nosso mar!”
Maria de Fátima Valente, funcionária da Florista Fernandinha, no centro de Ovar, está a atender uma cliente que se lamenta do estado das couves-galegas – “quando se apanham já estão todas queimadas”. A loja onde trabalha há 30 anos “feitos a 2 de Abril” só esteve fechada “nos dois primeiros dias” de funcionamento da cerca sanitária. “Depois abrimos logo, porque vendemos rações para os passarinhos e para as galinhas.” Flores é que saem muito poucas por estes dias. “Já nem para funerais vendemos”, lamenta a habitante de Válega, informando que este sábado “há três enterros”, todos de pessoas que “morreram do vírus”. Segundo os números da autarquia, Ovar regista 604 infectados (504 na contabilidade da Direcção-Geral da Saúde) com o SARS-CoV-2 e 25 óbitos.
Agora que a cerca sanitária foi levantada, Maria de Fátima teme que alguns vareiros não tenham o melhor comportamento. “Por exemplo, há aqui uma senhora de 80 anos que vem cá muitas vezes. E não vem fazer nada, vem passar o tempo. Já lhe disse que não pode ser, até porque a patroa não quer, mas ela, coitada, acaba por vir. E sem máscara. Eu que estou aqui vejo muito isso: são as pessoas mais velhas as que têm menos cuidado…”
Cuidado é coisa que Jorge Catalão promete ter. Quando Ovar ficou isolada, decidiu fechar a loja. “Não por uma imposição legal, antes por uma questão de solidariedade com os restantes comerciantes.” A Casa das Festas, que há 21 anos vende pão-de-ló e outros bolos de cake design, só voltou a abrir as portas no fim-de-semana da Páscoa. Antes, conta ao PÚBLICO, também não valia a pena mantê-las abertas: “A maior parte dos consumidores de pão-de-ló são de fora. Se não podiam cá entrar pessoas de outros concelhos, para que é que íamos estar abertos?”
Jorge e a mulher voltarão em breve a abrir a Casa das Festas, mas respeitando “escrupulosamente” todas as regras. “Este não é o momento para ganhar dinheiro. Vou retomar a minha actividade, mas cumprindo tudo direitinho. Nós estaremos protegidos e na loja só entrará uma pessoa de cada vez. É importante que os comerciantes sejam eles próprios conscienciosos.”
Se a primeira cerca sanitária foi “absolutamente indispensável”, Jorge entende que a sua renovação já não foi “tão imprescindível” e que agora chegou o momento de, aos poucos, a economia local iniciar a sua recuperação. “Não podemos passar de um estado de calamidade para um estado de calamidade económica”, sublinha.
O que Jorge teme é que o “estigma” que caiu sobre os vareiros demore a passar. “Passou a sensação que somos todos perigosos”, lamenta. Helena Almeida reitera a preocupação: “O meu receio é que o povo de Ovar fique aqui com o rótulo.”
A Fernanda de Oliveira, de 67 anos, preocupa-a mais o facto de “a calamidade” a ter apanhado de surpresa e a ter deixado privada de um rendimento que completa “a reforma pequenina” que tem. “Há uns 25 anos” que vende peixe no Mercado Municipal e pelas ruas de Ovar, empurrando um carrinho. Naquele tom de voz cantado tão característico dos vareiros, conta que espera “por novas ordens” para poder voltar ao activo.
Vive em Enxemil, na cidade de Ovar, e não é “mulher de estar parada”. “Estou habituada a andar, a gente parada sente muito”, comenta. E custa-lhe “ter deixado os clientes de mãos a abanar”. “Mas não podia fazer nada, alguns ainda me ligaram a perguntar se tinha peixe, mas tiveram que se desenrascar de outra maneira.”
Durante o último mês, Fernanda deixou-se estar por casa, “aborrecida”. De vez em quando, “ia dar um passeiozito” para os lados da “ponte da Moita”, mas coisa pouca. Está ansiosa por poder “respirar”, empurrar o seu carrinho e soltar o pregão. “Ó freguesa, é do nosso mar!”