Máscaras: fomos tratados como crianças
Ou Graça Freitas não entendeu o que aí vinha – e é grave. Ou entendeu e camuflou o perigo real da situação – e também é grave.
Até agora, a minha avaliação resumida à resposta do Governo à pandemia da covid-19 é: em termos de saúde pública, francamente bem; em termos de reação para mitigar a crise económica, nem por isso. Em todo o caso, há algumas nódoas até na gestão sanitária que não saem com a ensaboadela habitual que desfaz a camada de proteína do coronavírus. O exemplo do não aconselhamento do uso das máscaras cabe aqui na perfeição.
A 22 de março, Graça Freitas, diretora geral da Saúde, dizia as frases que se seguem. ‘Usar máscara não vale a pena.’ ‘Não se pode fiar na falsa proteção de uma máscara, é um bocado de tecido na boca.’ ‘Nem sequer são impermeáveis, com a humidade o vírus passa.’ ‘Não use máscara, é uma falsa sensação de segurança.’
No entanto, esta semana, a ministra da Saúde reconheceu e recomendou que toda a gente use máscaras quando em público dentro de espaços fechados, como supermercados ou transportes públicos. Não é a bala de prata para trucidar o coronavírus, claro, complementar à distância social e à lavagem e desinfeção das mãos, mas afinal útil.
Verdade: a DGS tinha então o respaldo da OMS e do Centro Europeu para o Controlo de Doenças para não recomendar o uso generalizado de máscaras. Mas ninguém obriga a nossa DGS a ficar pelos mínimos de precaução da OMS. Neste caso, toda a gente perceberia que se fosse além da OMS. Havia abundantes razões para recomendar o uso de máscaras em público.
Primeiro, o bom senso. Se a covid-19 se transmite sobretudo pelas gotículas com vírus que espalham por aí os infetados – incluindo os assintomáticos que podem não fazer ideia que são, momentaneamente, viveiros de vírus –, é evidente que o que seja barreira à difusão das gotículas é um meio que contraria o contágio, mesmo se não o elimina totalmente. Além disso, é dissuasor de tocarmos na cara com as mãos sujas e contaminarmos a pele, sobretudo na boca e no nariz que, assim, ficam tapados.
Tivemos também recomendação do uso de máscaras por políticos e autoridades de saúde dos países orientais onde há uso massivo nos locais públicos. (Mas que sabem eles para ensinar os superiores ocidentais? Só contiveram o contágio de coronavírus com grande sucesso.)
Não há muita pesquisa científica sobre uso de máscaras, mas os estudos existentes apontam para a diminuição do risco de contágio de vírus respiratórios. Um meta estudo que reviu os estudos feitos sobre a SARS de 2003 concluiu que “medidas físicas [lavar as mãos, uso de máscaras, de luvas e de roupa protetora] são altamente eficazes na prevenção da disseminação da SARS”. Outro estudo oferece a conclusão de que tanto as máscaras cirúrgicas como as N95 são igualmente eficazes na prevenção do contágio da gripe. Mais um estudo, sobre contágio de doenças através de gotículas em contexto de locais de cuidados de saúde e nas comunidades, vai no mesmo sentido: máscaras, e máscaras combinadas com higiene das mãos, previnem a infeção, sobretudo se usadas desde cedo. Há uns tantos mais.
Por fim, a realidade manda cumprimentos. Havendo países com covid-19 antes de nós, e com resultados uns satisfatórios e outros catastróficos, era fácil ver que estratégias haviam resultado e quais conduziam ao caos e destruição. Os países orientais, que logo no início responderam com a experiência acumulada da SARS, englobaram as máscaras no pacote anti coronavírus, juntamente com a lavagem das mãos, o gel desinfetante, a distância entre as pessoas e a paragem das escolas.
Sei bem que quando os casos confirmados de infeção por coronavírus nos caíram em cima, não havia material de proteção individual suficiente para muito tempo para os profissionais de saúde, pelo que as máscaras tinham de ser reservadas para quem estava em maior risco e com maior necessidade de proteção. A recomendação da DGS vem só no momento em que já foram comprados equipamentos de proteção individual para o SNS e os agentes económicos tiveram tempo de ir colocando máscaras no mercado.
Mas foi uma má decisão da DGS. A opção poderia ter sido requisitar as máscaras existentes nas farmácias para os profissionais do SNS, algo perfeitamente entendível. Ao mesmo tempo recomendando que fizéssemos máscaras caseiras ou usássemos lenços ou cachecóis para tapar boca e nariz.
Da forma que decidiram, houve contágios que poderiam ter sido evitados. E – igualmente mau – retira a confiança na informação que vem da DGS e na capacidade técnica da equipa de Graça Freitas. Afinal, a informação que nos dão é a que mais nos protege, ou é apenas a que circunstancialmente é mais facilitadora da ação do Governo? Há precaução ou somente relutante acompanhamento das recomendações internacionais? Devemos confiar ou é melhor informamo-nos por nossa conta?
Sobretudo porque Graça Freitas – mais uma vez seguindo os mínimos da OMS – foi quem recomendou visitas aos lares de idosos, para ser prontamente desautorizada poucos dias depois. E tivemos a DGS aconselhando as pessoas que vieram do Norte de Itália (já na fase de calamidade) na semana do Carnaval a fazerem vida normal, em vez de os recambiar sossegados para casa para impedir potenciais contágios.
Ou Graça Freitas não entendeu o que aí vinha – e é grave. Ou entendeu e camuflou o perigo real da situação – e também é grave.
Não quero ser injusta. A resposta do Governo tem sido francamente positiva. A ministra da Saúde cresceu para mim – tem sido incansável, com pouquíssimos erros e lapsos debaixo de um escrutínio e cansaço brutais. Graça Freitas alterna entre a aparente inegável competência técnica e tiradas de levarmos as mãos à cabeça.
Mas juntemos aos vários conselhos contraproducentes (para ser suave) de Graça Freitas o parecer do Conselho Nacional de Saúde Pública contra o encerramento das escolas (uma medida essencial para os números reduzidos de contágio que temos tido) e, ainda, as pérolas do porta-voz do CNSP dizendo que a covid-19 não é problema nenhum e é menos mortal que a gripe. Posto isto, é impossível não desconfiar que a decisão política tem sido de melhor qualidade que a decisão técnica. O que é lisonjeiro para o Governo, mas não traz segurança de um robusto aconselhamento científico aos decisores políticos. No fim da pandemia, teremos de discutir se estas organizações são só meios de distribuir prebendas ou se de facto têm alguma valia.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico