“Os humanos não são Deus” – ou como a pandemia transformou Harari num novo Fukuyama
A confiança na omnipotência tipicamente divina da evolução tecnológica sai muita abalada das proporções “totais” e “quase totalitárias” desta pandemia.
1. Em Junho de 2018, em Munique, moderei um debate em que o orador convidado para lançar o tema era o Cardeal Reinhardt Marx. As palavras com que abriu a sua palestra nunca mais me largaram e, desde que iniciámos o transe global da pandemia, ecoaram em mim mais sonoramente. Cito de cor: “Há uma asserção em que, julgo, crentes e não crentes estão de acordo e que pode ser o postulado de partida de qualquer entendimento e mesmo de uma ética universal: os humanos não são Deus; os humanos não são deuses”.
2. Muitos recordam certamente o furor que fez, no rescaldo da queda do muro de Berlim, o livro de Fukuyama O fim da história e o último homem. A sua tese, inspirada na dialéctica hegeliana, consistia na apologia de que a queda do bloco socialista significava o triunfo global e irreversível das democracias liberais e das suas economias de mercado. Depois de uma primeira onda democrática, que se iniciara com a revolução do 25 de Abril, seguiram-se as vagas da América Latina e a da Europa de Leste. A partir daqui, com a derrota do modelo socialista, a democracia liberal e a economia de mercado tomariam conta do planeta e ditariam o fim da história. O fim da história não era propriamente o fim do mundo; era o início de um tempo em que não mais se questionaria o modelo político e o modelo económico.
Eis a simplificação do pensamento de Fukuyama, bem mais complexo e rico. A ideia que passou à história – à história das ideias – foi esta: o devir histórico chegara ao seu final. Diante da improcedência manifesta da tese, Fukuyama corrigiria as interpretações, defendendo que a palavra “fim” não fora usada na acepção de “termo” ou de “final”, mas de “finalidade” ou de “sentido”. Algo, diga-se, não muito fácil de conciliar com a escolha da segunda parte do título do livro: “o último homem” (a não ser que dê à palavra “último” uma conotação escatológica).
Logo à época, foram muitos – entre os quais me incluía – os que consideraram uma tal tese totalmente infundada, entre o ingénuo e o ideologicamente apologético. Era mesmo preciso desvalorizar (e desconhecer) a história para propugnar que havia chegado ao fim. Ou até, numa leitura mais benévola, que tinha cumprido o seu fim, encontrado o seu sentido. A história não é de sentido único. Os anos seguintes, com o 11 de Setembro de 2001 ou com a crise financeira de 2008, encarregar-se-iam de evidenciar o que já quase todos sabiam: enquanto houver mulheres e homens, não há fim da história, embora possa consumar-se a história do fim.
3. Nos anos recentes, tem feito caminho a “narrativa-visão” de Yuval Harari, nos livros Sapiens, de animais a deuses e Homo Deus, depois relativamente adocicada em 21 Lições para o século XXI. O entusiasmo que gerou é diferente do fenómeno Fukuyama; tem um alcance mais geral, que evoca A Terceira Vaga, de Alvin Toffler, e os anos oitenta. A cultura, a informação e o pensamento de Harari são poderosos e valem seguramente mais do que a “percepção” pública que perpassa e faz sucesso. Mas a mensagem inscrita nos seus escritos atractivos e sensuais, mais uma vez, não é inocente. Também ela é deliberada.
Seguindo as passadas do transhumanismo – largamente antecipado no pensamento sistémico, designadamente por Luhmann, para quem a pessoa não passa de um “sistema psíquico” –, Harari nega (e renega) os fundamentos milenares do humanismo. O que faz, procurando demonstrar que o salto tecnológico – em particular, com a inteligência artificial e com os big data – força uma evolução do homo sapiens sapiens para um novo ser. Um ser que já não será humano, como atestam os exemplos da conexão de um cérebro a um computador para lá da morte física ou da criação de uma Internet de cérebros. Um ser que não se distinguirá pela inteligência, pois esta será apropriada pelas máquinas numa escala indisputável pela mente humana. Um mundo em que os grandes dilemas morais dos mitos gregos ou das narrativas fundacionais são remetidos para a instância algorítmica, num assomo de “digitolatria”. Uma orbe em que o poder dispõe de recursos capazes de conhecer o cidadão, de o conhecer no sentido quase bíblico, isto é, na intimidade, porventura ainda melhor do que ele próprio, abrindo-se o caminho para a ditadura digital (“digitocracia”). Um planeta em que, mercê da parafernália tecnológica, seremos capazes de “dominar a fome, as pragas e a guerra”.
Tudo o que culmina num “admirável mundo novo” em que haverá uma cesura na espécie humana: de um lado, a massa informe de humanos sapiens imprestáveis e, do outro, uma nova espécie, selecta e restrita, de “super-homens” ou de “homens-deuses”. Espécie essa que, aliada ao poderio das máquinas inteligentes, controlará todas as instâncias da vida. Ao contrário da hipótese de Fukuyama, esta não é uma visão antropologicamente optimista, porque não é antropológica (é talvez “algorítmica”) e, muito menos, optimista.
4. Um dos esforços de Harari não é entrever o mundo futuro, é convencer-nos que ele já está presente. Mas a confiança na omnipotência tipicamente divina da evolução tecnológica sai muita abalada das proporções “totais” e “quase totalitárias” desta pandemia. Afinal, como nos mitos gregos ou nas histórias bíblicas, um vírus ínfimo e vulgar põe em guarda toda uma civilização. E, embora seja cedo para fazer vaticínios, questiona muitas das premissas do que ele julgava ser o futuro.
A 3 de Abril, em entrevista ao South China Morning Post, Harari justifica-se, citando o Homo Deus, com a ideia de que a pandemia se deve a uma “falha humana” e não à nossa incapacidade de controlo ou domínio da mesma. O ponto é mesmo esse, é todo esse: falha humana. Errare humanum est. Ou muito me engano – o que será sempre e irredutivelmente humano – ou vai acontecer à previsão da nova espécie de Harari o que aconteceu ao fim da história de Fukuyama.
O cardeal Marx tem razão, razão compreensiva e razão compassiva: “Os humanos não são Deus”. Nem deuses.
Sim e Não
SIM. Papa Francisco. O perdão de dívida aos países mais pobres, o apelo sobre os refugiados e o apoio a soluções solidárias e inovadoras na UE. Todo um programa de “conversão” global.
NÃO. Ministério da Saúde. Falta transparência a todos os números: dos mortos e infectados até à aquisição e distribuição de equipamentos. E a sonegação às autarquias é incompreensível.