Algo está podre no Ministério da Cultura
Do Ministério da Cultura exigimos pensamento sólido nas respostas imediatas, pensamento estratégico na construção de um futuro. Exigimos o tão urgente reforço orçamental para um sector que está há mais de uma década altamente sub-financiado. Exigimos seriedade nas respostas, seriedade nas medidas.
Uma boa tragédia começa sempre com uma cidade assolada por uma peste.
Mas, ao contrário do que se pensa, a tragédia não é sobre morrerem todos no fim. A tragédia também não é sobre os heróis, é, quase sempre, sobre salvar o comum.
O momento que vivemos é novo para qualquer pessoa, para qualquer sector, para qualquer país. Esta pandemia não veio com um manual de instruções, não nos deu tempo de pré-produção e obriga-nos, diariamente, a encontrar soluções de sobrevivência.
No que diz respeito à cultura, ouvimos já por várias vezes a ministra dizer que os artistas e os trabalhadores das artes foram os primeiros a ser obrigados a parar as suas actividades, e os primeiros a disponibilizarem o seu trabalho online, num gesto de solidariedade, como forma de encorajar e melhorar as dificuldades que o isolamento social pressupõe.
Os artistas que o fizeram tiveram, decerto, motivos diversos, tão diversos como as multiplicidades de respostas que daí vieram. A resposta online veio em forma de texto, de poema filmado, de música, de partilha de arquivo, de conferências, de conversas, e tantas outras. Também vieram respostas em forma de silêncio, em forma de recolhimento. O que não é coisa pouca.
Seja qual for a sua forma ou intenção, surgiu certamente de uma enorme urgência. Rainer Maria Rilke respondia ao jovem poeta com quem se correspondia dizendo que “a verdadeira obra de arte surge da necessidade”. Assim, não duvido que todas estas respostas tenham, antes de qualquer outra coisa, surgido de uma necessidade profunda e imediata, sem nunca prever a caixa de Pandora que se poderia estar a abrir.
O imediato entrou agora na sua quarta semana, e, se há coisa que já percebemos é que os poemas alimentam, mas não matam a fome.
Ao mesmo tempo que artistas, produtores, técnicos, e outros trabalhadores das artes produziam aquilo que a ministra considera uma resposta do sector, na disponibilização e criação destes conteúdos online, os mesmos também usavam essas ferramentas para se reunir, para reflectir e para ajustar posicionamentos. Enquanto as redes se inundavam de concertos à varanda, os mesmos trabalhadores escreviam dezenas de cartas abertas, artigos de opinião e petições. Esses trabalhadores estão a organizar-se para pensar na dignidade da sua sobrevivência.
O mais fascinante é que, no que toca a dignidade e a sobrevivência, as posições dos profissionais não são assim tão fracturantes.
A resposta do Ministério da Cultura (MC), no imediato, surgiu também de várias formas. Em primeiro lugar, na directiva lançada a todas as instituições da sua tutela para cumprirem todos os seus compromissos. Aliado a isso, a criação do decreto lei 10-I/2020 de 26 de Março, que abriu caminho para que todas as autarquias e respectivas instituições municipais e públicas pudessem, legalmente, contornar o Código da Contratação Pública, que impedia o pagamento de actividades não realizadas.
Ao mesmo tempo, o Ministério, através da DGArtes, mantém o financiamento acordado às companhias apoiadas, pedindo-lhes para reagendarem as suas actividades, ou, caso isso não seja possível, permitindo o seu cancelamento, com a contrapartida de garantirem a remuneração a todos os intervenientes.
Estas medidas foram fundamentais para permitir que a resolução do que estava a ser suspenso pudesse ser negociada partindo de um principio fundamental de dignidade.
A título pessoal, penso que estas medidas poderiam ter ido muito mais longe. Era o momento certo para que autarquias e instituições privadas com financiamentos públicos fossem obrigadas a manter o acordado, e não lhes fosse dado margem para qualquer negociação de redução de valor. Perdeu-se uma oportunidade de usar o estado de emergência para agir perante uma emergência.
O decreto publicado privilegia o reagendamento das actividades, embora nenhum de nós saiba quando e de que forma isso vai voltar a acontecer. Além do mais, o não pagamento integral na data acordada, transferindo a totalidade ou parte desse valor para o momento do reagendamento, é uma forma de perpetuar e reforçar a precarização do sector, uma vez que os trabalhadores terão de sobreviver agora com uma parte, e depois com o resto. Como se alguém pudesse viver os próximos meses apenas a comer o pequeno-almoço (o correspondente a 30% do pagamento), e daqui a um ano, na nova data de apresentação, apenas comendo o jantar e um copo de leite antes de dormir (correspondente ao resto).
O decreto prevê o cancelamento apenas quando não for possível o seu reagendamento, sendo que neste caso “podem proceder ao pagamento do preço dos compromissos anteriormente assumidos, caso o bem ou serviço tenha sido efectivamente prestados, ou na respectiva proporção, aplicando-se o disposto no artigo 299.º do CCP”.
Não entendo a razão pela qual se deixa a possibilidade de negociação do valor acordado, uma vez que estes organismos têm orçamentos fechados para o ano corrente. Não pagar no imediato o valor acordado, mesmo que a actividade não aconteça, e usar o momento excepcional que estamos a viver para empobrecer ainda mais um sector já tão frágil, é a minha acepção para gestão danosa. Afinal, atrás de cada actividade cultural contratualizada ou acordada, estão dezenas e dezenas de trabalhadores cuja única fonte de financiamento depende exclusivamente dela. Numa equação simples: cada valor que é renegociado é proporcional à comida e à renda que cada trabalhador pode não conseguir pagar.
Ainda assim, a realidade do tecido cultural em Portugal é muito mais diversa e é urgente encontrar outras soluções. Foi neste sentido que o Ministério da Cultura lançou uma linha de apoio no valor de um milhão de euros, que seria gerida pela DGArtes. Todos os profissionais o disseram, e tal como o sindicato do sector CENA-STE fez chegar à ministra, esse valor é altamente insuficiente. E, viemos nós depois a descobrir, estava mascarado de concurso, o que obrigou os agentes culturais a desenvolverem novas candidaturas que iriam ser avaliadas, cotadas, e, posteriormente, apoiadas ou não.
Não são essas as medidas de um país com o mínimo de pensamento de política cultural. Mas, como em qualquer tragédia, nada se resolve no primeiro acto, embora ninguém esperasse que a nova entrada em cena da ministra Graça Fonseca fosse tão desastrosa como aquilo que esta quarta-feira anunciou.
Assumindo a sua inspiração nas tais reacções iniciais dos artistas, Graça Fonseca anunciou que o MC pretendia criar um TV Fest. Numa reportagem da RTP é possível assistir ao triste espectáculo de ouvir a ministra, em jeito de programadora, a falar sobre o festival que ela própria criou.
Algo está podre no Ministério da Cultura. É importante lembrar que o Ministério não deve fazer curadoria nem ser promotor de festivais, no entanto, podemos ouvir Graça Fonseca dizer à imprensa: “Nós convidámos o Júlio Isidro, uma pessoa muito querida de todos nós e com muitos anos precisamente a descobrir artistas”, “a nossa ideia é que…”, como se de uma curadoria se tratasse, ou como se coubesse ao Ministério a descoberta de novos talentos.
Depois, é anunciado um investimento de um milhão de euros para um festival que será divulgado na RTP e na RTP Play. Será importante lembrar que a RTP recebe directamente mais de metade do orçamento para a Cultura. Que sentido faz que a mesma tenha um reforço de um milhão para fazer aquilo que é já a sua missão, e para a qual já está a ser financiada?
Por último, o festival é anunciado como uma medida que pretende proteger artistas e técnicos, embora os concertos sejam gravados pelos artistas nas suas próprias casas.
Como em todas as profissões, também nas artes há relações pessoais com colegas de trabalho, mas duvido que todos os músicos estejam a fazer o isolamento social numa casa com técnicos de palco, assistentes de cena, técnicos de luz, carregadores, iluminadores, etc. Será que a ideia é que cada artista divida o cachet com técnicos com quem costume trabalhar? Com que critério? Segundo o comunicado do MC reproduzido no PÚBLICO: “Este apoio governamental estende-se não só aos músicos, mas também às suas equipas técnicas e agentes, que cada músico é encorajado a identificar publicamente na ficha técnica do programa em que participa”. Será que o apoio que estão a referir é uma troca de publicidade, para sabermos que técnicos poderemos contratar quando isto tudo passar?
Mais uma vez, o que escrevo não pretende colocar em causa os artistas que aqui aceitem trabalhar. Se há coisa que este período nos mostrou foi a tremenda generosidade que há entre pares e a importância de sabermos ser solidários e atentos uns aos outros.
Mas do Ministério da Cultura exigimos pensamento sólido nas respostas imediatas, pensamento estratégico na construção de um futuro. Exigimos o tão urgente reforço orçamental para um sector que está há mais de uma década altamente subfinanciado. Exigimos seriedade nas respostas, seriedade nas medidas. Ao Ministério da Cultura não pedimos que seja promotor ou programador. Também não exigimos que invente grande coisa. Se nos garantisse a dignidade no trabalho, na protecção e no acesso aos aparelhos, o resto nós sabemos como fazer.
É que se há coisa que a ministra tem razão é que aos artistas não é preciso dar para já estarem a oferecer. Se há coisa de que os artistas entendem é da importância de salvar o comum. Não deve ser difícil tutelar um ministério assim.