Dia 14: As armadilhas da frustração
Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para quem está separado pela quarentena, e não só.
Filha,
Por coincidência, ou não, esta quarentena coincide com a Quaresma. Ainda me lembro de uma folha que me davam na catequese com um desenho para pintar de um menino e uma menina no início de um caminho de quarenta pedrinhas, que acabava numa igreja. A ideia era escolher um “sacrifício”, qualquer coisa que nos custasse mesmo muito, como não comer chocolates ou levantarmo-nos sem refilar, e depois colorir uma pedra por dia se a promessa fosse cumprida, deixando-a em branco, se tivéssemos falhado.
Levava aquilo muito a sério e chegava ao dia de Páscoa com uma sensação de vitória — e o ovo sabia-me melhor —, mas também com a culpa pelas vezes que falhara, ou pior do que isso, aldrabara um bocadinho. Teoricamente, o exercício vergava o desejo e treinava a capacidade de resistir à frustração, em busca da santidade. Tudo coisas que alguns psicólogos garantem que faltam a esta geração de crianças, acusadas de não serem capazes de adiar os impulsos e esperar pela recompensa.
Porém, a verdade, é que suspeito que não aprendi grande coisa com tudo aquilo, ou talvez seja só a minha preguiça a falar. Ao longo destes anos, fui percebendo que a vida se encarrega de nos colocar obstáculos, bem duros e reais, e que já é o cabo dos trabalhos ultrapassá-los — como esta pandemia —, quanto mais inventar dificuldades artificiais. Se calhar, é por isso que os avós são mais brandos do que os pais.
Mas será que crianças “exercitadas” nestas renúncias, aquelas que, por exemplo, praticam desportos de alta competição e negam a si mesmas tantas coisas, estão a aguentar melhor estes tempos em casa? São psicologicamente mais fortes? Ou o que nos torna mais fortes, mais capazes de fazer face a murros no estômago como este que vivemos, é uma coisa completamente diferente?
Aguardo ansiosamente a tua resposta.
Querida Mummy,
Concordo que já há tantos obstáculos na vida que inventar mais parece um exercício tonto. A ideia de que é dever dos pais colocar frustrações no caminho dos filhos, para que se tornem mais “capazes”, está tão enraizada que nem as pobres mães com recém-nascidos escapam. Falo com tantas que têm um bebé nos braços e me ligam em lágrimas, porque todos à sua volta lhes dizem que o bebé deve habituar-se desde o primeiro dia a adormecer sozinho. E elas, como também eu o fiz, esforçam-se para contrariar o impulso de ir pegar no filho ao colo, acreditando mesmo que os estão a preparar melhor para a vida.
É óbvio que retirar os obstáculos, criando um mundo irreal, também não é útil, não tanto porque a criança fica sem ter onde testar a frustração — porque os pais nunca os conseguiriam retirar todos! —, mas porque pode convencê-los de que não acreditamos que sejam capazes de os superar. Que as coisas são tão assustadoras que os podem mesmo magoar irremediavelmente, e isso é mau.
Todos queremos que os nossos filhos sejam resilientes, mas todos os estudos mostram que a resiliência nasce do facto de a criança ter uma relação forte de amor, de acolhimento e de segurança. E não, de enfrentar muitas dificuldades — as dificuldades são o contexto em que a resiliência adquirida tem a oportunidade de se manifestar.
Voltando à sua pergunta, se os sacrifícios servem para alguma coisa. Parece-me que sim, se tiverem efeitos colaterais positivos: uma pessoa que se esforça para não comer alimentos de que gosta mas que engordam e depois emagrece, sente-se mais saudável e melhor com o seu corpo, ou seja ganhou com o sacrifício; alguém que treina horas e, em consequência disso, vai aos Jogos Olímpicos, aprende muito sobre si própria e recebe recompensas interiores e exteriores. Mas, aquilo que me parece, é que das duas, uma, ou o processo dá prazer (mesmo com momentos difíceis), ou não é possível, nem benéfico aguentar o sacrifício. Pode ter aprendido a “aguentar”, mas espero que a nossa vida tenha mais propósito do que só aprender a “aguentar.”
E isto é verdade para tudo. Ficar em casa com os nossos filhos, trabalhar longas horas, fazer um desporto de alta competição, tudo envolve sacrifício, claro, até porque é preciso escolher algumas coisas em detrimento de outras, mas envolve também muito prazer. Ao contrário da profecia de que se cedermos ao prazer vamos tornar-nos nuns preguiçosos que nem conseguem sair da cama, eu começo a achar que o prazer, aquilo que nos preenche e nos realiza, pode ser a melhor bússola para sabermos se estamos no caminho certo. Talvez tenha mesmo sido mesmo para isso que Deus o criou.
P.S. Está estudado que uma das melhores formas de trabalhar a resiliência de uma criança é deixá-la brincar, sem supervisão próxima de um adulto, ao ar livre! Nada que se possa fazer durante esta quarentena, mas podemos pensar numa adaptação indoors! Mas fica para uma próxima carta.
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram